O beija-flor

Desde pequeno que me habituei a chamar a atenção. Faço biquinho como se fosse chorar quando não me ligam ou como se fosse o mais inteligente de todos e tivesse acabado de descobrir a pólvora, quando os outros fixam os olhos para o pedestal em que me inventei como estátua.

Depois aprendi que vale a pena aparecer ao lado dos mais poderosos, ainda que seja a servir-lhes café, pontuando as suas observações com OK, ámen ou KO. Na televisão, claro. Havia já muitos programas de televisão que tinham tornado famosas pessoas até por serem capazes de passar meses fazendo nada por encomenda. Havia mesmo um menino homem que se tinha tornado famoso por aparecer sempre atrás do repórter-mira do operador de câmara que filmava multidões. Sem perder um plano das câmaras que filmaram multidões do psd, cheguei a primeiro ministro! E não é que fiz chefe das tropas quem nunca tinha sido sequer soldado raso. Não é "nice"?

Convenci-me que podia ser notícia maior, alvejando com desemprego os meus concidadãos e critica os que não tiveram pontaria para isso. Perdi o norte da consciência social e passei a defender o salve-se quem puder. Quando se afogava alguém nos naufrágios sociais por não ter dinheiro nem bóia, sossegava a minha consciência garantindo que deviam ter tido cautela e pago seguros em vez de comer, já que o estado não pode ser uma imensa bóia. Ai, a forma liberal como participei ao lado dos poderosos cabos de guerra! A insensibilidade máxima para com os náufragos culminou com a eliminação e penúria de todos os institutos de socorros a náufragos, deixando naufragar no mar liberal, a saúde, a educação e a ciência, para alem de outras que nem me lembro. Mas que espero não ter esquecido nesses exaltantes momentos de pacovice financeira em que percebi que o produto interno bruto não tinha a ver com o produto interno de matemática secundária, essa que troquei pelo direito para depois me ultrapassar pela direita.

E não é que chego a chefe dos comissários europeus! Com um pais inteiro a falar da honra que é ter-me como testa de ferro do mundo dos poderosos, não podia ser melhor! É a glória.

Para a glória ser completa, preciso de ficar nos livros de história como o tipo que ganhou o euro 2004 e ganhou muitos euros enquanto subia ao pico da Europa dos 25 que me convidaram. E que a história não fale dos ranhosos que não conseguem ver a auréola de santo padroeiro de Portugal em peregrinação e teimam em ver uma auréola da nódoa que sai de Portugal para se espalhar em volta, na Europa.


[o aveiro; 1/7/2004]

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a árvore em que tropeçamos