Passe-me o sal!

Entrámos na casa de pasto, quase ao mesmo tempo. Faz favor! O senhor primeiro! - disse eu, enquanto segurava a porta entreaberta. Muito Obrigado! - ouvi-o, numa voz sumida.
Quando habituei os olhos à sala e dei uma vista de olhos pelas mesas, comecei a arrepender-me de o ter deixado entrar primeiro. Nada que possa ser considerado indelicadeza; o facto é que eu tinha mesmo pressa e ele parecia-me um sujeito reformado, pacato e cheio de tempo ali a ocupar a mesa que tinha sobrado para um de nós. Durante uns momentos em que hesito - saio, não saio - fico a olhar para a mesa invejada. Quando ele levantou os olhos do papel rabiscado que passa por ementa, viu-me. E chamou-me com um gesto da mão.

Lá fui eu até à mesa, já aborrecido por ir perder o meu tempo. Mas, afinal, ele não fez mais do que convidar-me para almoçar. Em resposta às suas insistências, não mais que murmuradas, acabei por sentar-me à sua frente.

Que vai ser? - perguntou o empregado de mesa. Esperei que ele murmurasse: - Bacalhau, por favor! e água - para eu pedir - Tripas! e vinho -, claro, em voz alta. Ainda atirei: - Rápido! Com gás? - perguntou o empregado ao meu companheiro de mesa, que se riu levemente quando eu levantei a voz para dizer: - Agora têm gás na canalização ?

Enquanto esperava, pus-me a conversar. A conversar nem é bem o termo. Eu comecei a falar da vida, das ruas , do trânsito, do tempo, de futebol, ... enquanto ele me ouvia pacientemente e com atenção. Com tal ouvinte até me esqueci da pressa que tinha e continuei a falar ao mesmo tempo que comia. De vez em quando, ria-me das minhas próprias graças com a boca cheia, para que ele soubesse que era para rir. E ele sorria. Eu nem precisava de mais. Sentia-me bem.

A única vez que ele falou, na sua voz sumida, disse: Passe-me o sal! Eu bem o ouvi e logo lhe passei o sal, sem deixar de falar um só momento. Entre as coisas que disse, também pedi a conta e exclamei: à moda do porto? E, sem parar, passei para a politica. Aí foi um tal falar dos gajos de Lisboa e da pouca vergonha dos políticos, dos tachos, das reformas à nascença, dos filhos da ... Acabei a falar no Santana que era o indigitado do momento e andava a formar governo. Não podia faltar! Ainda a conta não tinha chegado e já eu estava a mandar bocas sobre aquela ideia de um ministério da economia no porto. E ri-me a bom rir. Quase me entalava com as minhas piadas. Para finalizar, ouvi-me a dizer: Tinha piada!

Você acha? - atreveu-se ele a perguntar. Então não acho! - respondi eu. O que é preciso é uma economia à moda do porto! Já estávamos à porta da tasca.

Um Mercedes encostou-se ao passeio. O condutor fardado saiu e veio abrir a porta mesmo ao meu lado: "Faz favor, senhor ministro!"
Ainda ouvi um murmúrio de boa tarde, antes de ficar sozinho na berma da rua.

[o aveiro; 15/07/2004]

Sem comentários:

a árvore em que tropeçamos