a maldade

Dou por mim a pescar na memória. Pequenas coisas, palavras cortantes, interjeições maldosas, pedras no sapato, areias nos olhos,... aqueles actos e factos desvalorizados um a um á medida que foram acontecendo. E que, neste momento, teimam em amontoar-se à porta dos meus olhos. Dou por mim a pescar na memória o dia em que a operação (est)ética foi feita sem que eu tivesse dado por ela.

Falo de mim e dos amigos que vou perdendo de vista. Falo de mim e das pessoas que me habituei a admirar por esta ou aquela razão num ou noutro momento: coragem física e capacidade de sacrifício, conhecimento, sabedoria, capacidade, humor, competência, acção, pensamento, estudo. Muitos deles nem os conheci pessoalmente, mas uma frase certeira que escreveram ou disseram fez com que olhasse para eles como pessoas admiráveis.

Sou muito influenciável, devo confessar. E atribuo sentido e valor às frases certeiras, às palavras da sabedoria, a livros. Mesmo quando não concordo com as ideias, atribuo cor e vida própria às pessoas por essa via das palavras e da sageza que me ponho a adivinhar. Até que passo a esperar a concordância entre as palavras e os actos, consistência entre as palavras de ontem e as de hoje, coerência entre a sabedoria e a educação. Quanto maior a admiração intelectual, tanto maior se torna então a minha exigência. Ingénua, eu sei.

Eis porque é para mim muito mais doloroso assistir ao espectáculo do debate entre Carrilho e Carmona do que aos espectáculos em que entram avelinos, valentins e isaltinos. É dramático ver um intelectual, professor e ex-ministro da cultura descer por avenidas que dão para o largo da decadência e que a televisão não se coibiu de mostrar variadas vezes para aumentar o nosso desconforto e vergonha.

Dou por mim a pescar na memória antigos debates, a tentar vislumbrar o lugar do tempo em que o atoleiro quebrou a casca do seu ovo. O tempo em que as estaladelas fenderam a porcelana da cultura cívica.

E sobra-me uma imensa pena de mim mesmo, ao perceber que há quem tenha expulsado as suas ideias e educação, para não dizer os seus ideais, para um campo de refugiados longe do campo da acção onde quer exercer influência e poder. Para quem, o poder?

[o aveiro; 21/9/2005]

Sem comentários:

somos, fomos, somos, seremos