a cultura


quando a cultura se debate
entre ser
qualquer coisa para vender
e ter
qualquer coisa para vender

eu rabisco cornos e asas
que nem se compram nem se vendem

nem por mim nem a ninguém

postal do pedagógico


eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que tem de haver uma razão para aceitarmos ser como somos quem somos sendo outros e estes mesmos nem mais ar nem mais fogo nem mais água nem

tem de haver uma razão para não querermos estar nas reuniões e tem de haver uma outra para sabermos que o tempo está a passar-se sem sermos atraiçoados por uma vida súbita que nos devolvesse o olhar a um outro lugar longe destes dedos vagabundos que deslizam por um postal no outro lado do frio glacial que aqui me faz gritar por me saber capaz de uma dor que não o é por já não sentir coisa alguma fora das palavras por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer que eu preciso de aprender a não dizer por dizer

A pista escandinava

Não há muito tempo escrevi eu acerca do meu desejo de ser professor escandinavo (finlandês, mais precisamente) a propósito de afirmações mais ou menos a despropósito de Jorge Sampaio. Dizia ele que os professores finlandeses passavam 50 horas na escola e, apesar disso ou por isso mesmo, eu queria ser finlandês. Uns pensaram que eu queria mudar de presidente, outros que eu precisava de arrefecer e houve mesmo quem pensasse que eu só queria mudar para um país onde se podia viver sem governo. Estávamos então no princípio da campanha malévola contra a função pública, em geral, e os professores das escolas públicas, em particular. O jornal diário fez-se caixa de eco destas declarações, sem comentários a favor da verdade. Em 11 de Setembro, quando as aulas estavam a começar em Portugal, na revista que acompanha a edição dominical do Público, aparece uma reportagem sobre as escolas da Finlândia. Há alguma deambulação interessante pela vida de alunos e de escolas. Numa caixa destacada, sob o título ?Sistema?, lá se pode ler que os professores (finlandeses) "têm cerca de 35 horas lectivas semanais e a preparação das aulas é feita em casa, em horas não laborais". Na revista do domingo seguinte, é publicada a carta de um leitor a desmentir e desmontar a informação e a repórter viajante publica um minúsculo pedido de desculpas e fala de um mal entendido (????) sobre o assunto. Nunca poderei provar que o meu jornal diário fez algum trabalho sujo para ajudar a desacreditar os professores no tempo em que o governo estava a tomar medidas (duvidosas e de cobertura para outros voos) sobre os horários de trabalho nas escolas públicas. Que miem os gatos escondidos se eu estiver a pisar-lhes os rabos que vejo.

E é altura de voltar à pista escandinava. Os nossos jornais que tanto abusaram da inspiração na musa escandinava para as escolas podem agora verificar que, se há arguidos entre os políticos nacionais, regionais ou locais escandinavos, a ninguém passa pela cabeça que suspeitos e arguidos possam apresentar-se como candidatos. Por cá, dezenas de arguidos por acções ligadas ao desempenho de cargos públicos estão a candidatar-se a cargos públicos, obtendo o favor de todos os jornais para publicitar as suas actuações mais ou menos à margem das leis e dos bons costumes.

Espalhemos o exemplo escandinavo! Então? Vamos lá a isso! E agora nem é preciso mentir!



[o aveiro;29/09/2005]

Pájaros

Pájaros. Atraviesan lluvias y países en el error de los imanes y los vientos, pájaros que volaban entre la ira y la luz.

Vuelven incompreensibles bajo leys de vértigo y olvido.




Ainda.Gamoneda

desenho, logo existe



no papel manteigueiro

irmandade das almas - VII

Irmãos! Não quero ser poeta, mas tanto tanto queria tornar reais os sonhos e dar satisfação aos desejos mais profundos que me animaram e animam! Não tenho a arte do poeta para fazer virar real o que o não é, o futuro radioso que prevejo para lá do futuro que vejo! Que homens somos nós? Que poetas somos? De todos os temas em estudo, auele que me apaixona é este da natureza do militante ligado às questões do aparelho teórico marxista-leninista, à concepção de partido, ... Que forja é o partido?
Levantou-se, enquanrto falava, o irmão Ulisses. [Exaltava-o a ideia de que estava preso, retido, apesar dos seus queixumes, pela filha de Atlas que não cessa de o seduzir com palavras doces e lisongieras para que ele se esqueça de Ítaca, da vida distinta da vida dos deuses.]
Não sei se me entendem, mas reputo esta questão de muito importante para irmãos do nosso tipo! - reclamou Ulisses, olhando de soslaio para o irmão Foz do Riacho, que até aí se tinha mantido sem qualquer marulho. Marulhou então, de acordo, e citou Bob Dylan, cantarolando em relação aos temas da situação nacional e internacional sobre o que se podia fazer:
Os grandes livros foram escritos/ os grandes ditos foram ditos/ e eu só quero pintar um quadro/ do que acontece por aqui de vez em quando/ ainda que não entenda bem o que se passa/ sei que morreremos algum dia, e que nenhuma morte deterá o mundo. E fehou a comporta.
Marta D. saíu. Saíram. Sem saber se de casa, se da casca. A escuridão tinha tomado conta da cidade. Um poeta pintava janelas iluminadas. Quando os irmãos acordaram havia frio em todas as direcções. E desjearam o conforto do partido.

As ruas encheram-se de ecos de passos dos automóveis partindo.

praça dos leões



o largo dos leõs



pois! os olhos vazios de vida são,
sob sombrias abas de um chapéu,
luzeiros brancos em campo de tiro

anjos suicidas em treino de asas.

a arte dos poetas

Por mais fantásticos que os contos sejam
a arte do poeta os faz reais.

citado por Goethe

largo dos leões



As grandes ceias fazem as noites longas, de que não sobra notícia.
Na memória uma palavra aqui, outra ali. Hoje ainda me lembro de uma ou duas. Para amanhã?

A caneta maquinal regista no papel manteigueiro os gestos dos dedos.

ali perto


irmandade das almas - VI

Citemos tudo! - citou um irmão libertino. Aí está bem citado o que um marxista-leninista não cita nunca. Esse é outro princípio violador. Pode ser que para esclarecer assuntos que nos preocupam, marxistas-leninistas, tenhamos de nos socorrer de outras fontes. Quando na cozinha estiver escuro, procuremos na varanda o que está na cozinha! - disse o irmão Busca-pólos. João Gordo rejubilava: Cada um cite o que quiser, mas que não caiamos na recitação abusiva dos clássicos. Nada de religião na nossa mesa! E, a propósito, citou Karl Marx: A miséria religiosa é, por um lado, a expressão da miséria real e, por outro, o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura acabrunhada, o sentimento de um mundo sem coração, tanto como é o espírito dos tempos privados de espírito. Ela é o ópio do povo. A supressão da religião da religião como felicidade ilusória do povo é uma exigência para a sua felicidade real. A exigência de renunciar às ilusões sobre o seu estado é a exigência de renunciar a um estado que tem necessidade de ilusões. A crítica da religião é a crítica do vale de lágrimas, do qual a religião é a auréola. Todos se espantaram com a memória de João G.
Não será uma citação a cair bem sobre a religião da nossa irmandade - o marxismo-leninismo - que nos abrasou a alma? Ai! Se o Marx nos visse agora! Tão religiosos que nós éramos! - inflamou-se o irmão Juvenal.
Isso tudo é muito importante, mas como é que vamos orgnaizar o estudo? Não temos hábitos de estudo! Nós estudámos o marxismo-leninismo à medida do que nos era exigido pelo Partido e das encomendas de sermões de vulgarização do marxismo. Quantas vezes vulgarização abusiva! E agora? Liberdade de leitura, de estudo, mas de quê? - afligiu-se com razão a irmã do Conde Ferreira.
Ora! podes sempre começar por ler os clássicos!Foi o caminho que eu segui depois de ter sido despedido de militante do partido dos cómicos românticos - gaguejou o irmão Caramelo de Contrabando. Ao que o irmão João G. retorquiu ironicamente: E se te fosses lixar! Isso é um conselho de velho: Cita o que quiseres mas só depois de teres lido os clássicos? Deus meu! Haja pachorra! O irmão Caramelo en+mendou logo, fez mesmo uma autocrítica ainda que raquítica. E rematou: Cada um leia o que quiser, o que mais o divirta, mas com o dever de dar contas das suas leituras aos irmãos da Mesa. Valeu? Caramelo ainda acrescentou, de cor, uma listinha bem interessante de leituras divertidas que afinal tinha feito. E logo ali se aprovou um programa de transfusões de leituras.
Irmão Domingo de Páscoa falou para pôr à consideração da Mesa: Acho também que devemos escrever até as parvoíces libertinas e passá-las no nosso círculo. A maior parte de nós está traumatizada pela escrita no PCRasuas e nunca mais escreveu uma linha que fosse. Para vencermos esta incapacidade, devíamos fazer promessa de trocarmos impressões por escrito. E devíamos começar por escrever estas coisas que temos vindo a chocalhar a Mesa inocente!
E assim ficou estabelecido pelo irmão Organizado: Estamos de acordo. O irmão Domingo de Páscoa fará a acta deste sonho!

cítara

Levanto-me então da plateia e, por entre metralhadoras esculpidas, conto de novo a parábola da agulha que me obceca. Desentranhei-a de um velho manual.
Trata-se de uma mulher que perdeu uma agulha na cozinha e a procura na varanda da sua casa. Acorre então o jovem que pretende ajudá-la, e pergunta: Que procura? - Uma agulha. Caíu-me na cozinha. Logo o inexperiente jovem se espanta muito e quer saber porque a procura ela na varanda. - Porque na cozinha está escuro - responde a mulher.
A parábola ajudará a desaprender alguma coisa e então será possível aprender outra coisa.

Herberto Helder

irmandade das almas - V

A linguagem do sonho é outra
Uma preocupação é a da linguagem, da língua falada e escrita.- Disse o irmão Bocas.
E, desentaramelando a língua, continuou:
Os partidos todos têm o discurso do poder, de sedução para apoio à manutenção ou conquista do poder. E mesmo quando dizem coisas diferentes dizem a mesma coisa. O receptor não distingue os diferentes discursos doss partidos de esuqerda, porque, da informação, o que permanece nas massas não é esta ou aquela "nuance", mas a estrutura do discurso, a sua organização, as ideias-base em que assenta a informação. E todos os partidos ditos de "esquerda" (e os de "direita"? não?) utilizam uma só estrutura lógica de linguagem, de discurso, organizam silogismos partindo das mesmas premissas e tirnado conclusões que só em pequenas aparências são diferentes, assentam sempre nos pressupostos fundamentais de que servem o povo, a classe operária, que a sua preocupação é com a situação das camadas desfavorecidas, que defendem o 25 de abril e que aunto a conclusões exprimem o sentir de amplas camadas e a necessidade do socialismo. Do lado do povo, que recebe a informação, não há diferença entre um discurso de sedução de um partido ou doutro. Assim, a primeira coisa que temos de ter presente é que não há ideias diferentes para fora sem linguagens diferentes. Temos de realizar, no campo da língua, um trabalho violador. - Concluíu o irmão Bocas.
João G. ria-se pelos olhos, lembrando-se daqueles artigos inflamados da bandeira rubra em que, das mesmas premissas, se tiravam conclusões diferentes em semanas diferentes. Que o João G. engolia logicamente e por devoção.
A irmã Marta D. referiu essas viragens bem explicadas que comiam os militantes, porque na política vencia a lógica, os argumentos válidos, quando se sabe que um argumento pode ser válido tendo tráfico ou tolice em cada uma das premissas ou na conclusão. E, pessimista, Mart D. aproveitou para dizer que os irmãos, cheios desses vícios de discurso, não iriam conseugir romper com essa língua passada.
E foi então que João G. disse:
Língua passada é bom! Coma-se e seja tudo pelas almas!
Irmão Organizado referiu, a propósito:
Nós, comunistas e irmãos, temos que experimentar. Esforcemos as meninges que ainda acabamos por conseguir. Se nos deixarmos ficar quietos é que não daremos nem um passo.
Todos os irmãos concordaram com esta filosofia de "estar quieto ser o contrário de andar". Um filósofo irmão, perdido no princípio do século passado e da filosofia, aproveitou para recitar o capítulo da unidade dos contrários, ao mesmo tempo que referia a necessidade de ter, no nosso estudo, referências que não podiam deixar de ser a classe operária e a sua doutrina, o marxismo-leninismo.
O irmão Domingo de Ramos apoiou esta coisa das referências e esclareceu que, dentre o material a adquirir para a Mesa, se devia dar prioridade a uma bússola que indicasse a esta irmandade pequeno-burguesa não o norte magnético mas o norte da classe operária e do marxismo-leninismo e que rebentasse caso a Mesa se desviasse desse admirável norte romântico.

[Já todos tinham saído quando, mais para si mesma, Marta D. denunciou Domingos de R. como vendedor de bússolas, manifestos e outros catecismos. E é para que conste que não consta da acta da sessão que aqui o comentário vem referido, em nota de rodapé.]

estava a pagar quando acordei

mandei lavar
as camisolas ocas

na lavandaria
encontraram nelas coladas
os ombros de porcelana
da tua alma

pediram-me contas
e eu paguei.

irmandade das almas - IV

A verdade e a mentira são miscíveis e a mistura é mal-cheirosa.
Bons argumentos, válidos argumentos carregados de verdades servem, em política, para apresentar boas mentiras como se fossem boas verdades. As melhores fundamentações de coisas erradas (e tantas há) é isso da mistura da verdade com a mentira. Mistura mal cheirosa, mas só para olfactos muito apurados ou desconfiados. Quantas vezes comemos disso? Afirmemos! Mas não tentemos dar uma forma acabada, completa. Afirmemos abertamente. De forma aberta: para servir a verdade. Boa! Não tentemos cercar a mentira de muita verdade e muita citação para dela fazer verdade! E deixemos que se desconfie da verdade! Mesmo desta. Irmãos! Sejamos francos! Sejamos fracos!
Nesta altura, o irmão Foz do Marulho foi interrompido por aplausos entusiasmados e gritos de apoio.
E continuou:
Em especial, recomendo que não usemos os clássicos como armas (bem citados e bem cortados) para apoiar isto, aquilo ou o contrário. Nem falemos em nome de quem não somos (por exemplo, nunca falemos em nome da classe operária) para que as nossas opiniões ganhem respeito. As opiniões são nossas. Que as coma quem quiser! A árvore que dá fruto, o melhor fruto possível, não o preparou para quem o vai comer, mas para si mesma, para a sua própria reprodução. Se alguma ideia produzirmos é para nos reproduzirmos. Ora bem! E mais nada! Viva a Mesa!
De novo, o irmão se viu interrompido pelos gritos de euforia dos irmãos. Pediu calma, antes de continuar:
Falando em nome da classe operária, mentimos. Falemos da classe operária, sobre ela, dela, das ideias que lhe atribuem, dos que dizem representá-la, dos que falam em nome dela, de ... Sejamos tagarelas, para quebrar a solidão. Mas nunca usemos a classe operária para dar peso às ideias. Porque as ideias não têm peso.

estar preso

A respeito de outras vidas (Matemática, claro!), uma colegamiga de Trás-os -Montes escreve:

Quando se risca uma linha (no chão) em torno de alguém este julga que está preso...

citando o Diário de Miguel Torga.

a maldade

Dou por mim a pescar na memória. Pequenas coisas, palavras cortantes, interjeições maldosas, pedras no sapato, areias nos olhos,... aqueles actos e factos desvalorizados um a um á medida que foram acontecendo. E que, neste momento, teimam em amontoar-se à porta dos meus olhos. Dou por mim a pescar na memória o dia em que a operação (est)ética foi feita sem que eu tivesse dado por ela.

Falo de mim e dos amigos que vou perdendo de vista. Falo de mim e das pessoas que me habituei a admirar por esta ou aquela razão num ou noutro momento: coragem física e capacidade de sacrifício, conhecimento, sabedoria, capacidade, humor, competência, acção, pensamento, estudo. Muitos deles nem os conheci pessoalmente, mas uma frase certeira que escreveram ou disseram fez com que olhasse para eles como pessoas admiráveis.

Sou muito influenciável, devo confessar. E atribuo sentido e valor às frases certeiras, às palavras da sabedoria, a livros. Mesmo quando não concordo com as ideias, atribuo cor e vida própria às pessoas por essa via das palavras e da sageza que me ponho a adivinhar. Até que passo a esperar a concordância entre as palavras e os actos, consistência entre as palavras de ontem e as de hoje, coerência entre a sabedoria e a educação. Quanto maior a admiração intelectual, tanto maior se torna então a minha exigência. Ingénua, eu sei.

Eis porque é para mim muito mais doloroso assistir ao espectáculo do debate entre Carrilho e Carmona do que aos espectáculos em que entram avelinos, valentins e isaltinos. É dramático ver um intelectual, professor e ex-ministro da cultura descer por avenidas que dão para o largo da decadência e que a televisão não se coibiu de mostrar variadas vezes para aumentar o nosso desconforto e vergonha.

Dou por mim a pescar na memória antigos debates, a tentar vislumbrar o lugar do tempo em que o atoleiro quebrou a casca do seu ovo. O tempo em que as estaladelas fenderam a porcelana da cultura cívica.

E sobra-me uma imensa pena de mim mesmo, ao perceber que há quem tenha expulsado as suas ideias e educação, para não dizer os seus ideais, para um campo de refugiados longe do campo da acção onde quer exercer influência e poder. Para quem, o poder?

[o aveiro; 21/9/2005]

irmandade das almas - III

À superfície nadam o azeite e a verdade.
Há uma questão de método à partida que devia ser considerada. É hábito, em política, que só se levantem grandes questões quando se têm para elas grandes argumentos, bons e científicos e cientificamente estruturados. É, por isso, que, sistematicamente, as bocas de corredor são muito mais interessantes e criativas do que o que se diz nas reuniões.
Proponho que, como princípio violador, à nossa Mesa possam ser apresentadas todas as questões, mesmo que heréticas, sem terem qualquer aprofundamento teórico.
Pode ser que haja verdade nas coisas ditas a partir de impressões. Superficialmente pode ser que se apalpe a verdade.
E teríamos nós estofo para grandes aprofundamentos, a não ser de coisas já aprofundadas e viciadas pela falta de ar do abismo de argumentos em que já estão mergulhados na nossa consciência?
- concluiu a Irmã Marta D.
Que os irmãos apresentem as suas ideias todas! Mesmo sem as ter estudado - disseram outros irmãos.
Qualquer dos temas é tão complicado, tão complexo, que não chegaremos a ter qualquer opinião nova se tivermos de a fundamentar... - lamuriou-se Domingo de Ramos.
Viva a nossa superficialidade, pois então!
Não há-de ser a falta de profundidade que nos há-de impedir de dizer a verdade, irmãos!
- disse o irmão João G. que não gosta de estudar e, com razão!
E viva a heresia! Pois claro! - gritaram a cinco vozes.

irmandade das almas - II

Princípio de explicação.
Bom é esse título para uma introdução - vibrou o Domingo de Ramos. João G. deu os parabéns pelo achado. Tinha pensado em "Explicação de Princípios", mas a alma do José S. tinha lembrado que um catecismo não pode sofrer alteração para melhor; que se deixassem os princípios tal como já estavm explicados, que assim eram bons e justos e adequados ao paladar do tempo. Domingo de Ramos levantou-se, mostrando que era um pouco mais alto que a Musa, e pigarreou:
- Embora esteja um pouco tudo fora do que tem sido feito e dito e do que os irmãos secretários inspirados trazem à Mesa, gosto de aqui estar; a cadeira é boa. De qualquer modo, queria pôr à consideração dos irmãos algumas condições para continuar à Mesa, depois de terem levantado os pratos.
- Ouviremos o irmão, antes que ele se cale e a Mesa se emprenhe de silêncio, embora o silêncio também tenha direito à palavra na nossa irmandade de almas - filosofou o irmão Organizado.

Byron

Porque as palavaras são coisas; e uma pequena gota de tinta
Ao cair, como o orvalho, sobre uma ideia, produz
Aquilo que faz com que milhares de pessoas, talvez milhões, pensem.

George Gordon! Quem?

irmandade das almas - I

Em volta, a Mesa.

O irmão Melro escreveu antes de começar a escrever: o que os irmãos dizem não se escreve! De outro modo, quis dizer que não é obrigatório que as nossas gotas de tinta caiam como o orvalho nem que façam pensar sequer uma dúzia de pessoas. A irmã Marta D. até acrescentou, muito a propósito que, quando nos reunimos é mais por sermos amigos, para mantermos a fraternidade em volta da Mesa, do que para termos ideias. E, mesmo que a nossa Mesa não dê à luz uma única ideia, não há-de ser por isso que ela deixa de ser uma boa Mesa. Rematando, o nosso irmão João G. sublinhou que as Mesas não se medem pela fertilidade. Todos os irmãos se inclinaram para beijar a Mesa estéril. Também ela tem direito ao prazer e ao gozo. - concluíram, por unanimidade, em uníssono.

as batalhas que perdemos

Se um homem arrasta a sua cabeça penosamente
Das suas ruas olha com amargura não mais que o chão.

Pudesse ele levantar os olhos e daria pela compreensão
Nos olhos compassivos da demais gente!

Mas não! que cabeça pesada não desespera por afiados gumes
Ao modo obcecado de quem se sabe culpado ainda que inocente?

E se apura os seus ouvidos às abstractas farpas, em brandos lumes
Deixa fritar a elegância do pensamento e faz-se boçal como penitente.

o pintor...

O pintor vê passar um azul que deve ser sacrificado. Tem pena dele e ordena que seja substituído por um vermelho.

Ele confessa que isso aconteceu porque viu o azul e não via o vermelho.

Mas a mágoa, ...

Mas a mágoa, esta palavra míope
que rebenta na íris feminina
não suporta o peso dos cristais,
a espuma cristalina.


47º dos 50 parágrafos mentais de
armando silva carvalho; técnicas de engate; &etc. 1979

nenhum lugar

nenhum lugar é esta rasura
entre a claridade do dia mais intenso
e a cegueira da noite mais escura:

a linha de espuma, a estaladura
que, na escuridão, separa o céu do mar imenso

Tenho tanta pena de mim mesmo

Respondendo ao Bloco de Esquerda é uma estaladela no verniz de Alberto Souto. Parece impossível, mas é verdade: Alberto Souto é o Presidente da Câmara da terra onde vivo e que eu ajudei a eleger com o meu voto.
Tenho tanta pena de mim mesmo.

Só posso recomendar a leitura comparada dos textos de Alberto Souto com os do Bloco. Que mais posso fazer?

em bloco por aveiro



Há um "site" que apresenta as propostas da candidatura do bloco de esquerda às Cãmara e Assembleia Municipais de Aveiro. Pode ler as propostas e ver os candidatos. Mas também pode facilmente colaborar, concordando e discordando, e, clicando em contactos, pode mesmo visitar as propostas "on-line" das restantes candidaturas para comparar. A visita dá para ver como é diferente o bloco.
Aqui lhes deixo as imagens das melhores e mais bonitas cabeças de lista. Claro que são as minhas preferidas, que eu não sou tolo.

A roda

A campanha das autárquicas aproxima-se. Desta vez, ainda não assistimos a grandes actos de pré-campanha, embora sintamos o cheiro fervilhante do alcatrão em muitos lugares e seja previsível um aumento de actos inaugurais em que intervêm autarcas em fim de mandato e à procura de votos para o próximo. As inaugurações ainda podem esperar uns dias. Os debates televisionados em que entraram valentins, adelinos, isaltinos e outros ricos meninos mal-crescidos não animaram especialmente a pré-campanha. Instalou-se uma calmaria paradoxal na aldeia, nas aldeias, vilas e cidades.

O partido do governo procura que estas eleições não apareçam dramatizadas para que eventuais maus resultados não possam ser confundidos socraticamente com qualquer desgosto face à actuação do governo. Isso contribui para acalmar os fogosos desgostos locais que querem ver eleitos para as câmaras. E o calendário dos candidatos a Presidente da República, ao cavalgar as campanhas autárquicas, também é uma boa contribuição contra o campo da participação local no poder local.

Tudo se complicou também para os partidos da direita. Numa altura em que se apresentavam lavadinhos, capazes até para a rejeição de algumas das suas nódoas mais visíveis, sai-lhes na rifa a denúncia global e o debate geral sobre as ligações perigosas entre autarquias, partidos, construtores e outros empreendedores. A televisão logo havia de começar a dar visibilidade às nódoas em geral, desvalorizando as nódoas particulares, essas que as máquinas partidárias tinham posto em evidência pela vassourada. Não é azar? E o pior de tudo é que no debate sobre a corrupção, apareceu como consenso que a criação das empresas municipais foi tudo menos o que disseram que foi. Ouviram-se vozes amplificadas dos que denunciam com conhecimento de causa e de casa. Porquê inventar formas enviesadas de agilizar a administração? Só é preciso re-inventar a prestação de serviços públicos.

A campanha para as autarquias vai mal. Para não falarmos mais de autarquias, Sócrates nomeou para o Tribunal de Contas um reputado independente. Quem é pau para toda a obra?

Quem inventou a roda?

[o aveiro;15/9/2005]

não desistir




Não desistimos hoje, para podermos desistir amanhã.

Todos os dias apetece desistir, mudar de vida, partir para outra. Digo para mim mesmo que preciso de descanso e o mereço. Que, descansando do que vai sendo preciso fazer, ganho tempo para o que quero fazer. Quem não compreende isto? Quem não me compreende? Mas acabo sempre a aceitar mais isto e mais aquilo e a adiar a minha vida, a criar novos compromissos para andar sempre a prazo e fora de prazo. Todos os dias há um prazo que acaba sem que eu tenha feito o aprazado, porque uma outra coisa, atrasada também ela, se atravessa no caminho do tempo. Cobardia. Pura cobardia. Medo. Puro medo. Já há muito tempo que sei. Desistir disto ou daquilo, deixar de responder a este ou aquele apelo ou pedido de colaboração significa desistir não da coisa, do acto em si, mas antes da pessoa que por nós influenciada ou tocada passa a ser uma parte de nós.
A partir de certa altura, acontece-nos pensar que não nos podemos dar ao luxo de desistir de quem quer que seja, como se a solidão fosse insuportável.
E estamos a falar, na maior parte dos casos, de pessoas que não veremos mais ou que podem não querer ver-nos mais ou de quem nós já jurámos não querermos vê-las nunca mais. Muitas delas não as conhecemos e continuamos a não conhecê-las.

Algumas delas somos nós.

desenho, logo existe




desenho, logo existe




de algumas reuniões, sobra a beleza
dos desenhos de horrores...

ontem até amanhã

A semana passada passou como só um furacão sabe passar pelas nossas vidas. Nova Orleães passeia-nos nos nervos e ecoa-nos na cabeça porque dela fizemos templo ou rua apinhada da estridência de todas as misturas que o nosso sagrado mundo nos deu a ver. Toda a destruição nos custa, mas mais do que tudo nos custa a destruição dos pobres e daqueles pobres que ali vivem. ali naquele caldo cultural com todas as especiarias do mundo dos espíritos a boiar à superfície para que as possamos ver. Nenhum outro lugar do mundo escrito, gravado, fotografado ou filmado pode ser a montra fantástica que Nova Orleães sempre foi.
O furacão devolveu-nos a ingenuidade ao olhar. Lá onde está Nova Orleães, face à adversidade de uma calamidade natural há a mesma fragilidade da pobreza de qualquer outro lugar do mundo. Nova Orleães ensina-nos que estamos abandonados em todos os lugares e que nos resta clamar por ajuda naqueles dias em que a televisão já veio para nos mostrar ao mundo inteiro sem podermos ter o mundo inteiro de volta já que a ajuda ainda não se avista no horizonte.
Eu sou um velho, com a barba por fazer, sentado numa cadeira de baloiço do alpendre que ameaça cair. Olho para longe que é nem sei bem onde. Sonho tirar uma voz rouca de uma orquestra que só quer ser rápida mesmo quando cai numa sonolência de não saber bem que língua falar quando falo ou toco seja que instrumento de melancolia for. Não sei se me vi assim nos filmes dos meus desejos, ou se fui capa de um disco de não sei quantas rotações.
Fico-me para aqui a passar as contas de um rosário entre os dedos e a rezar para ter este meu mundo de volta, não tão pobre e abandonado como o furacão mostrou estar, mas com tudo o que é do mundo bom e mais protegido das tempestades naturais e humanas. Este velho crioulo não tem forças para mais do que para juntar a sua voz ao coro dos amigos do mundo inteiro que querem Nova Orleães de volta.
Volto para lá onde nunca estive. Revejo-me a passear de memória nas ruas, a esquecer-me de mim no carnaval, a caminhar na arquitectura do lugar, nos sopros e seus ecos dos corredores que se abrem como ruas do romance que li ou vi.
Quem pensar que pode fugir a esta reconstrução dos alicerces do espírito que Nova Orleães exige, está a pensar em fugir para uma terra de ninguém, vazia.
Volto para Nova Orleães. Quem não volta?

[o aveiro; 8/09/2005]

de costas voltadas




viraste-me as costas e já não sei que face é a tua
ou como te seguras ainda de pé depois de tantos dias e noites
sem te teres sentado

tudo porque não queres ver-me embora fiques aí mesmo (sinto-te!)
ao alcance da ternura da minha mão
caso pudesse virar-me e a minha mão não fosse insensível
como a tua

feita de pedra.

ouvi mesmo agora...

Ouvi mesmo agora dizer
(a um daqueles tipos importantes que vão à televisão dizer as coisas importantes)
qualquer coisa como:

... os portugueses nunca votaram mal...

E que, por isso, votarão cavaco se este se candidatar a prefeito ...

concluiria.


Que ideia mais estúpida! Do meu ponto de vista, os portugueses votaram mal muitas vezes ou quase sempre, votando nesses tipos e nas organizações desses tipos importantes e ricos que trouxeram o país até esta desgraça que eles mesmos cavaram e não se cansam de catalogar como desgraça.

Não presumo sobre a superioridade absoluta ou a beleza ou ... do meu ponto de vista. E aceito os resultados eleitorais rezando para que as escolhas pelo voto do povo sejam certas e melhores que as minhas. Tem sido tanto assim que eu quase posso dizer, por desacordo com o povo e esses maganos, que não me sinto culpado por tanta desgraça.

:-)

A estupidez não paga imposto, já dizia a minha mãe! Que espera a inspecção geral de finanças para investigar estes tipos? Não primando pela inteligência, para estes tipos, ir à televisão não é mais que um sinal exterior de riqueza.

eu sei que(...)


(...)
Eu sei que o mistério
é uma dentadura abandonada.
(...)



Mário Henrique Leiria
in Climas Ortopédicos

help


grita
e enquanto não tiveres a certeza
que eu te ouço
repete
a palavra que queres fixar na memória do mundo
por estes dias em que te perdeste ao perder tudo
que é o que podias lembrar
o que tinhas de teu
para além do nome

nova orleães

ontem fui a lisboa

Ontem fomos ao Aeroporto de Lisboa.
Fomos resgatar parte da família no seu regresso dos Estados Unidos da América. Por isso, prestei pouca atenção aos outros aspectos do dia. Se não tivesse ido a Lisboa, tinha ido até uma conferência nacional sobre as autárquicas (do bloco de esquerda). Como não fui, procurei ler no meu jornal de hoje alguma coisa que me dissesse o que se disse sobre a questão autárquica nessa conferência.

Mas, a acreditar no jornal, a conferência foi sobre as presidenciais. Quem assim nos fez até sermos todos tão parecidos? Até parecermos membros de um só e mesmo partido - o das oportunidades... E quem me dera que não o dos oportunismos! Que futuro nos reserva o passado?

Ontem, fui a Lisboa. Se tivesse ido ao Porto, tinha ido a Lisboa.

o verão vai embora


O cardo adula com penugem tenra

A papoila arroja de si o vestido
como uma grávida

A macela desfia
pelos botões

A chicória fecha-se
e encanece.



[Reiner Kunze (Luz Videira e Renato Correia)]

flor de laranjeira



Nada na minha vida verdadeira me liga às flores de laranjeira. A não ser lembrar-me que a minha juventude não gostava de as ver cair cedo demais das laranjeiras que haviam de dar as laranjas a roubar nas noites escuras da aldeia invernosa. E ouvia falar delas para os casamentos das fotografias.
Até que um dia vi uma fotografia em que tu, vestida de noiva, seguravas um ramo, a flor de laranjeira . Eu não sabia como podem ser lindas as flores de laranjeira. Desde então bebo flores de laranjeira perdidas na água fervente em que as mergulho. E espero sujar a lapela do meu melhor casaco com um pingo da flor de laranjeira do sonho (tal qual a da fotografia) em que a tiravas do teu ramo e me estendias a mão...

a pintura do amador




uma discussão acesa é candeia na noite dos amantes:
os corpos servem é para discutir e as mãos em labaredas
para sublinhar as palavras mais ardentes enquanto as bocas
desmaiam - disseste isto e aqui chegada apagaste-te em silêncio
e repouso, encolhida ali perto numa curva do meu sonho, ao luar.

pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui