o exercício do dever.

O funcionário público sempre se levantara, manhãzinha cedo, para o seu exercício diário. Com a surdina ligada, para não acordar os vizinhos, o funcionário público marcava o ritmo dos movimentos: um, dois, três, quatro, cinco, um, dois, ... Depois do duche rápido, vestia-se e saía para a rua. Chegava cedo e ajeitava os papéis ao longo da pequena bancada, ao seu alcance e fora do alcance de quem se dirigia ao guichet onde se escondia e se mostrava o funcionário público para distribuir o exacto papel e não um qualquer papel. Ali sentado do lado de dentro do balcão antigo, não deixava ver mais que os seus olhos de ave, uma gravata e a mão cuidada que entregava o papel exacto, necessário para um determinado acto.

Uma destas semanas, às ordens do governo, o funcionário público deu por si espantado sem saber qual o seu papel nem que papel havia para dar. Sem aviso aos utentes e ao funcionário, o papel de ontem que e ainda não se cumprira em qualquer acto, já não servia, porque os actos e serviços, ontem necessários para os utentes, tinham deixado de o ser para o governante que os tinha altianunciado. O funcionário público nem sabia o que acontecia para fazer acontecer a ordem do dia. E isto começou a repetir-se com uma frequência assustadora. Alguns trabalhadores que, a confiar nos governantes, ontem desempenhavam tarefas absolutamente necessárias, revelavam-se inúteis e mesmo prejudiciais hoje, por ordem do governo. O funcionário público via como cada uma das pessoas acolhia a dor ao deixar de ser a pessoa que era, pessoa em si mesma e para os outros que a reconheciam pelos serviços imprescindíveis que prestava. Não só tinham baralhado os papéis no seu guichet, como as pessoas da fila em espera tinham perguntas para as quais as respostas de ontem não podiam ser repetidas hoje e nem havia resposta que se pudesse dar. E que papel para as pessoas à sua volta?

Num instante, os governantes mudavam decisões para nenhumas decisões mais caras.



Sem saber bem qual é o seu papel, o funcionário público levanta-se manhã cedo, desliga a surdina e acorda toda a gente a gritar para quem o quer ouvir que é urgente mudar estes governantes antes que eles gastem todo o dinheiro a desfazer o que ontem era uma boa razão para gastar o dinheiro de amanhã.

O dever de um funcionário público pode ser pedir a demissão dos seus governantes?

[o aveiro; 12/07/2007]

1 comentário:

Artur Salvador disse...

Pode, é um dever que o faça. Foi por isto que tivemos um 25 de Abril.

Carissimo Prof., dei comigo a ler estas linhas, escritas com sentimento..., como sou um dos que tais, parei, li, imaginei... e nada a fazer. POdiamo-nos manifestar, mas não vale a pena. è preciso ter sorte, e ter trabalho a fazer o que for preciso no momento. Amanhã, depois, se vê o que se vai resolver.