aves de cinza

As aves carregaram para os seus ninhos o cotão dos meus bolsos, a poeira à minha volta e até o meu tabaco de cachimbo. Nunca se devem deixar os pacotes de tabaco abertos, mas naquela manhã eu não podia fechar nada que me dissesse respeito.
Estava deitado, com a cabeça enterrada na areia, enquanto as sentia debicar o meu mundo todo espalhado. Não podia mexer-me e as aves tudo levaram.
Quando me levantei tarde demais, persegui cambaleante as últimas aves do meu pesadelo. Adivinhei os seus ninhos pelos cheiro do tabaco e fiquei emboscado a ganhar forças.
Deixei passar os dias. Não me mexia. Seguia fascinado os voos e maravilhava-me com os saques das aves. Partiam e regressavam aos ninhos, sempre em construção, com pequenas partículas nos bicos. Não interrompia a construção. A partir de certa altura, habituadas à minha presença rígida, as aves começaram a debicar por perto e algumas vezes chegavam a poisar nos meus ombros.

Um dia não contive o grito horrível. E as aves esvoaçaram para fora dos seus ninhos. Entretanto, eu, com mil cuidados, subi as traves.

Quando alcancei o primeiro ninho, enchi o cachimbo e, deliciado, fumei o ninho.


pretextos. 1993. arsélio martins

2 comentários:

Anónimo disse...

Ninhicida!!!

Anónimo disse...

Pensando melhor...
Quem enterra a cabeça na areia acaba sempre por fumar os ninhos que tanto trabalho deram a construir a outros...

pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui