a vida dos outros

Recebo todos os dias anúncios nas diversas caixas de correio. Cada anúncio contém uma oferta irrecusável disto ou daquilo, seguramente de alguma coisa que eu não pedi. Atafulho os meus caixotes de lixo com as ofertas. De vez em quando, dou-me ao cuidado de responder recusando as ofertas, na tentativa vã de ser riscado da lista, arriscando-me a perder os laços a quem me quer tanto bem.
Recentemente comecei a receber conselhos, recomendações morais e políticas, reprovações de opções passadas e indicações para opções futuras. Espantoso mesmo é que a maior parte das reprovações e recomendações morais vêm assinadas por um senhor de nome “anónimo” que me conhece e a quem eu não posso conhecer. Não sei quem seja, nem sei se é alguma empresa ou partido,... Algumas vezes, o senhor anónimo tem o cuidado de dizer que já concordou com as minhas opções, sem dizer quais, ou de dizer que nunca concordou mas que é preciso que eu me dê ao respeito e faça isto ou aquilo tal qual ele acha que é bom que seja feito. O senhor anónimo chega mesmo a chamar-me nomes mais feios que o meu nome próprio, levando-me a pensar que foi engano e o recado é para filho da família adoptiva do senhor anónimo.
Outras vezes, toma como referência para as suas tiradas a coerência de posições de algum partido (ou sindicato ou dirigente sindical) que é público nunca me ter servido de referência. O melhor disto tudo é quando o senhor anónimo me recomenda que eu tome cuidado com esta ou aquela posição, por ela ser contestada por muitos dos eleitores de um partido importante no qual eu nunca votaria. Porque será que o senhor anónimo acha que pode influenciar-me com o desgosto de eleitores com mau gosto militante?
Uma característica do senhor anónimo (deve ser só um, penso eu) é ser só orelhas. Cada vez me parece mais que o senhor anónimo não lê um só dos papéis que está a rejeitar quando me escreve. Provavelmente, o senhor anónimo nem sabe ler e decora tudo o que querem que ele transcreva para a letra de forma das suas recomendações.

Volta e meia, também recebo cartas de amor. Detesto ter de admitir que a maior parte das declarações de amor que recebo vêm infectadas com vírus que só não me prejudicam porque elas não me procuram a mim e procuram um sistema operativo que não é o meu. E agrada-me confessar que gosto de receber cartas de amor. Sejam elas quais forem, são as que eu recebo e eu não posso dar-me ao luxo de lhes resistir.

Do mesmo modo, gosto de receber cartas do senhor anónimo. Já não tenho pai nem mãe. Para além do senhor anónimo, quem mais me pode dar conselhos e puxões de orelhas? O senhor anónimo faz de mim a criança que eu nunca fui.

[o aveiro; 13/03/2008]

1 comentário:

Anónimo disse...

... juroooooooooo que na sou eu!

pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui