a conta dos nervos


a joaninha decidiu não partir daqui. eu bem reclamo a liberdade dela e reclamo que parta para que os outros acreditem na liberdade de que falo. só que a joaninha decidiu gozar a sua liberdade mesmo por aqui e não há quem a convença a partir. muito menos eu.
durante alguns dias senti-me mal com a situação e andei envergonhado a esconder-me das pessoas que não acreditaram nem acreditam que eu abri a jaula da joaninha. é verdade que eu tinha tonado pública a minha obsessão pela joaninha e dizia aos sete ventos que a joaninha estava comigo por gostar de mim. tinham-me ofendido todos quantos pensavam que a joaninha não se ia embora por ter pena de mim ou por a ter ameaçado de alguma maldade caso ela partisse e me deixasse só.
eu não me cansava de lhe perguntar se ela algum dia tinha pensado em abrir asas e voar e de lhe dizer que nada faria para a impedir quando desejasse partir embora ficasse de coração partido.
acreditem ou não, para acabar com os mexericos a respeito da minha obsessão doentia, acabei por ser eu a pedir-lhe que partisse, que voasse para bem longe de mim.
já não falo com ela, mas ela porta-se com sempre só que eu agora dou pelos pequenos factos a que não dava importância: ela também não fala comigo, mas há quem diga que sempre foi assim. e que nem podia ser de outra forma.

4 comentários:

Anónimo disse...

Não basta abrir a jaula para a joaninha se sentir livre.
Tens de voltar a falar com ela e explicar-lhe, o melhor que souberes, o que é isso a que se chama liberdade. A joaninha esteve demasiado tempo enclausurada e agora tem medo. Talvez não saiba sequer que tem asas. Habla com ella.
Marília

adealmeida disse...

Eu falava com ela. Só muito tarde percebi que as pessoas que não viam a pequena joaninha pensavam que eu era um velho maluco que tinha decorado uns versos e não se cansava de os repetir e outras, as que chegavam a aproximar-se até ver a joaninha, explicavam-me pacientemente que as joaninhas não percebem linguagem de gente e que se ela estava por ali é porque ali encontrava tudo o que era preciso à sua vidinha. Demorei anos a aceitar que a minha presença ali e a sua presença ali não eram mais que acasos da vidinha da joaninha.
Já tínhamos morrido os dois quando compreendi a diferença entre uma joaninha de colecção (espetada num alfinete de gravata que eu levo a lisboa) e a joaninha que abriu as asas e levantou voo das costas da minha mão e não sabe ir para lisboa nem pensa nisso.

adealmeida disse...

não pensa nisso, ou pensa nisso como quem pensa em nada.

Anónimo disse...

Para que todos saibam agora e para sempre, aqui fica escrito que a joaninha percebe linguagem de gente, está nos sítios por amizade e devoção, não vem a Lisboa porque não quer e só não fala quando está fortemente traumatizada.

A joaninha com asas andava muito curiosa por conhecer o sítio, certamente maravilhoso, para onde tantas vezes, cada vez mais vezes, te ausentavas sem ela.
Um dia, sem que desses por isso, substituiu por si própria a joaninha de colecção que usas na gravata que te acompanha aos actos solenes que te trazem a Lisboa e, sem saberes, partiu contigo.
A viagem, fê-la a joaninha em grande alvoroço, apenas entrecortado de vez em quando pelo desagradável pensamento "como é que ele não percebe que eu sou a verdadeira joaninha com asas?", logo amenizado pela suave emoção de se sentir embalada pelo bater do teu coração - não esquecer que a joaninha com asas viajava disfarçada de joaninha de gravata.
À chegada, rodeada de altas gaiolas ao cimo das quais as suas frágeis asas nunca a levariam, enjoada por cheiros nauseabundos que até aí só de leve e de longe conhecia, a joaninha com asas, pela primeira vez na sua vida, pôs em dúvida a sanidade mental do seu amigo.
Quase desfalecida, viu-se subitamente metida num asfixiante espaço fechado, destinado, conseguiu perceber, a não menos asfixiantes debates, discussões e reflexões.
Do que se passou, a joaninha com asas nada sabe e, da viagem de regresso, mal se lembra.
Da experiência, sobram à joaninha os horríveis pesadelos que muitas vezes não a deixam dormir, um grande nó na garganta que não a deixa falar e a firme decisão de nunca mais voltar a Lisboa.
De ti, gosta ainda. Com precaução mas, gosta. E se levantou voo da palma da tua mão, podes crer que foi apenas para escolher um bom poiso, de onde te observa meticulosamente - está provado que as joaninhas com asas são muito meticulosas - até ganhar, de novo, confiança.
Marília

somos, fomos, somos, seremos