a coisa


Podes olhar e ver um espelho simplesmente um espelho decorado a ferro forjado ou ver uma janela que pode abrir-se ou a geometria da decoração em ferro forjado ou a transformação geométrica da árvore em imagem ao espelho ou imaginar e ver a forja a face tisnada do ferreiro o martelo nas mãos calejadas do ferreiro as faíscas saltando da bigorna a labareda como um sopro do carvão incendiado o ferro vermelho contorcendo-se de dor de queimado e torturado ou como uma cobra apanhada e depois sempre presa mergulhada na celha ou no ribeiro que ali passa para que se torne rígida a forma temperada na forma de uma encomenda desenhada por uma tradição vista num risco de pais para filhos ferreiros todos ou podes concentrar-te no vidro e do fogo que consumiu a areia até ser vidro e espelho. Podes ver o que quiseres. Assim o queiras ver.

quarta de cinzas

Há 70334 novos desempregados - escreve-se nos jornais destes dias, apesar de Janeiro ter sido simultaneamente o mês de mais oferta (8821) e mais colocações (4219). As empresas aproveitaram os fins dos contratos a prazo para os não renovarem. O exército de desempregados conta agora com quase meio milhão de portugueses (447966). E é no norte do país que o contingente de desempregados é maior.

A este respeito, os partidos que se têm revezado na governação fazem declarações de carnaval a roçar o obsceno. Para além das almofadas do emprego no sector público, os dirigentes políticos cansam-se em acusações mútuas sobre as políticas que cada um deles seguiu. De tal modo se cansam nisto que parecem cegos na realidade. A realidade que importa considerar está nas pessoas e famílias de pessoas em busca de solução para o dia a dia difícil e intolerável e não em abstractas considerações estatísticas de mais ou menos pontos percentuais. Todos os dias, dia a dia, os desempregados são pessoas que buscam uma oportunidade de trabalho produtivo pelo qual recebam salário que viabilize a vida familiar e dê curso a uma vida produtiva, socialmente útil.

O discurso directo de cada um não pode ser ensopado em caldo de estatísticas que se usam como espadas de brincar nas mãos dos foliões dos governos. Não há optimismo que subsista no mundo de cada desempregado se o seu mundo se mantiver em derrocada. E não há pessimismo que nos salve se o pessimismo sobre as políticas do aparente inimigo esconder o que ontem fizeram e querem voltar a fazer no poder a que anseiam voltar. Sem nada fazer para devolver à sociedade a vida produtiva de cada produtor e consumidor.

A época também revelou que das nossas empresas, registadas como tal, há 71882 que empregam ninguém. Máscaras? A maioria destas empresas não representa iniciativas familiares de auto-emprego a confiar na sua classificação por sectores de actividade. Empresas de nada e de ninguém? Ou é a sua força produtiva que mantém a lucrativa indústria de recibos verdes?

Carnaval? Quarta de cinzas..

[o aveiro; 27/02/2009]

o espelho

amanhã e depois de amanhã ainda lá estará o espelho



mas não ficará lá para sempre assim tão velho
como a árvore que nele se reflecte

os anjos de barro

os anjos de barro estão mais que mortos.

todos sabemos que foram amassados
carinhosamente e depois com crueldade
moldados em forma de anjos

antes de serem cozidos em forno ou inferno

como queiram.

raia de steiner



animamos um "lugar geométrico" ou dois.... para nos darmos uma curva ou duas onde se ajustem e descansem os nossos pontos pequenos como olhos e as nossas rectas como trágicas varas

as perguntas e as respostas

Caminho pelas manhãs dos dias, respondendo a cumprimentos vagos. Habitualmente. Mas agora, cada vez mais frequentemente, as pessoas que me conhecem acrescentam perguntas do tipo: Ainda está no activo? Ainda não se reformou? Porque é que tira o chapéu com este frio? Hoje assim aconteceu. Nunca sei muito bem o que responder. Mas respondo mais ou menos maquinalmente, porque todas as perguntas têm resposta. Não posso responder que não sei, mas também não posso responder que sei. Respondo que sim, que estou activo, que ainda não me reformei, que tiro o feio chapéu num gesto automático de cumprimento. Outras perguntas mais raras: Então a avaliação? Ainda vai querer ser avaliado? Para quê? Anda sempre a contestar políticas e leis e ainda vai cumprir a lei feita por um governo de que discorda e não elegeu? Podia responder: Sei lá. De facto, a minha vida democrática é feita de desacordo com os partidos de governo e com muitas das leis que são promulgadas. E, sem deixar de as discutir, cumpro as leis da minha república. Da república das bananas? acrescentam. Parece, mas não é. E eu, que só respondo pela minha cabeça em vias de reforma, digo que discuto as leis e as respeito quando aprovadas pela maioria dos eleitos. Se assim não fosse, não podia esperar dos outros que cumprissem as leis que, em minha opinião, são boas. E teria de achar que vivíamos numa república de bananas, onde cada intenção de grupo vale como lei ou mais que a lei. E nada vale, valendo tudo de igual modo. Por isso, vou cumprindo as leis desta república sem qualquer desejo de voltar ao tempo em que as leis do governo não passavam pelo crivo do parlamento, da presidência, do acordo constitucional, dos tribunais, das eleições. Está bem. mas para o seu caso, o governo já abriu excepção em lei. Pois, abriu excepção, mas não me retira o direito de ser igual aos outros que cumprem a lei geral. Já antes isso me aconteceu. Abriram excepções para os presidentes dos conselhos executivos e eu, presidente do conselho executivo, recusei ser tratado de forma diferente dos meus colegas de profissão que continuavam a ser avaliados com as regras da altura. Que me podem perguntar a seguir? Vai ganhar mais? Não. Então para que é que isso lhe serve? Para ser o mesmo. Isso não é grande coisa. Pois não. Mas sou eu. Diferente de todos os outro? Diferente, claro. Mas mais igual, me parece. E depois? Sei lá. As respostas não são boas? E as perguntas?

[o aveiro; 13/02/2009]

baile


uma e outra camada de negro veste o verso: na esperança que por uma fenda negra ensaia um passo de dança quando eu não sei dar conta do que tenho entre mãos e me dá para não chorar um pincel varre as lágrimas para debaixo do tapete negro e as esconder dos olhos.

vouga


naquele dia o vouga saltara do seu leito e trabalhava por ali perto animando os sapos a parecerem príncipes não vá aparecer a donzela que nos quebre o feitiço

memória e procura

Arrumamos a nossa vida em pequenos cubículos. Uma parte da minha vida passa-se entre papéis poisados em estantes. As estantes são sólidas e a maior parte dos livros aparecem poisados em lugares que não são disputados por outros papéis. Mas a maior parte dos papéis parecem ter sido despejados a esmo por cima de outros e a desordem que nos dão a ver não é aparente. A família diz que aquele lugar e outros dos meus lugares só merecem uma classificação na porta ou na lombada: DIVERSOS. Para toda a gente, a desordem. Para mim, a ordem. Sabia onde se encontrava este ou aquele papel e sabia onde entra o computador e onde se alimenta, onde as mãos cabem e podem esticar os dedos, onde está o papel em branco, onde estão as canetas, onde me posso sentar, como posso escalar até aos papéis do alto.
Mas, recentemente, dei por mim a ter medo de arrumar este ou aquele conjunto de folhas. Ali, naquele mundo ordenado na minha memória passada, passaram a suceder-se jogos de gato e rato. De gatas, procuro o rato que arrumei. Como um gato me vejo pendurado, gestos cautelosos de felino para nada ser mexido e meticulosos exercícios de rememorar os lugares do papel que arrumei antes com tal cuidado que nunca me esquecesse do seu lugar.
No meu mundo, sei agora que arrumar é esconder e perder. E descobri que foi assim no passado. Ao procurar os papéis que preciso hoje sem falta, descubro papéis que devo ter arrumado cuidadosamente no passado e de que nem me lembrava agora. A busca de um papel arrumado ontem é um exercício lento e laborioso hoje, mais lento porque encontro o que já nem existia por não poder ser nomeado por mim, que lhes dera existência.
O mesmo se passa com o que só existe em discos, vários ali perdidos entre os papéis e vários em outros países e paraísos onde memórias minhas ficaram guardadas e de onde podem ser visitadas. Quando procuro isto, aparece-me aquilo. As palavras que eu associo ao perdido não nomeiam o que eu perdi, mas nomeiam, muitas vezes, o que eu esqueci e, por isso, não existe.

Nestas condições, sigo com muito interesse e atenção, a campanha negra. Leio notas de jornal, ouço investigadores e procuradores sobre os rastos do dinheiro, das agendas e das vidas virtuais dos suspeitos. Algumas vezes, pensamos que eles tinham destruído os rastos quando afinal os tinham arrumado para os perderem. Rezo pelo sucesso dos investigadores e procuradores.

Confiarei num procurador para os “diversos” onde a minha vidinha se perdeu? Depende muito da campanha em curso.

[o aveiro; 7/02/2009]

as caras mais a cara do burro feliz