a cegueira de quem lê é de quem ouve

Ouço todas as notícias, ouço tudo. Quando leio, falo para mim - só eu me ouço. Quando leio em voz alta deixo de ler e começo logo a inventar e a acrescentar enredos ao texto. Eu gosto de falar em voz alta como se estivesse a ler. Já mais do que uma vez fiz isso: falar como se estivesse a ler. Já mais do que uma vez tive um desgosto com isso. Mas também já me defendi bem dessa maneira: já disse muitos disparates sem apanhar com uma chuva de dissabores, porque as pessoas pensaram que eu não fazia mais do que ler em voz alta uma página de livro. As pessoas perdoam-me as páginas dos livros, não me perdoam as opiniões. Quando me ponho a falar, fingindo que estou a ler, deixo perceber um certo tom teatral próprio de quem declama. E as pessoas desligam-me do texto - olham para mim como se fosse um actor, altifalante das palavras de outro. É confortável. Um dia, subi a uma cadeira de esplanada, com os olhos vendados e, de livro na mão, recitei um longuíssimo poema, aparentemente decorado. Não era poema nenhum. Eu estava a dizer, com o ar dramático dos cegos, uma ladainha longa em que cada frase era inspirada pela anterior. Quando caiu a primeira moeda no meu chapéu ao fundo da cadeira, soube que o poema era bom. Os meus melhores textos nunca foram escritos. Só foram lidos, … de olhos vendados.

Sem comentários:

pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui