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nem bem que não acabe?

Para pior, já basta assim.

Quando estamos apanhados no delírio de uma gripe entusiástica, não nos vêm à memória frases batidas. Nada nos vem à memória. Enrolamos o que nos sobra de dignidade num lençol molhado e soçobramos, deixamos o corpo afundar na solidão do vale de lágrimas choradas por todos os poros. O corpo tudo faz para se afogar. Desses dias de puro desvario febril, não guardo memória de qualquer esforço que tenha feito para voltar a respirar, assobiar ou cantar. Deixava-me ir até à porta. Nem guardo memória de qualquer dor real. Sei onde estive por pura especulação a partir do que antes fora e do local onde me reencontrara depois. A fala e os gestos são mais cuidadosos por medo. A tosse ecoa na cabeça até esta ser uma caixa oca com as paredes a ameaçar ruína a cada novo ataque. A quem vive e trabalha comigo, dou um avanço para que possam fugir com segurança. Não guardo memória de guinada que dê novo sentido à vida. Nada terá acontecido que valha um esforço de memória.

Para melhor, está bem, está bem.

Dou por mim a desejar que uma parte do meu povo tenha querido conversar, para tomar decisões ou fazer escolhas sobre assuntos importantes. Não, não estive alheado dos debates sobre o referendo e nunca tive qualquer dúvida sobre a minha resposta à pergunta do referendo de domingo passado. Mas fiquei espantado com as leituras que se fizeram das palavras da pergunta. Uma parte importante do meu exercício profissional (e de cidadania, também!) depende da arte de perguntar e da vontade de responder a todas as perguntas. A pergunta de domingo precisava e merecia que a reflexão não fugisse dela. E fugiu-se até confundir as pessoas para que respondessem a uma pergunta sobre o segredo (in)confessável. O mais provável é que a última semana tenha sido apanhada em grande medida pela febre. Como eu tinha sido.

Mas não há mal que sempre dure.

Neste referendo, muito mais gente votou. E bem. Espero agora que governo e deputados actuem em conformidade com a boa vontade (expressa) da gente que "concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado". Pesadas e medidas, só estas palavras faziam a pergunta. Nenhuma mais. Nenhuma menos.

[o aveiro; 15/02/2007]

a árvore em que tropeçamos