O céu dos pobres de espírito

Confirmaram o que já sabíamos: mais de metade das empresas e dos patrões portugueses não paga impostos. Ou aguentam com espírito de missão prejuízos imensos ou ficam ela por ela. Passeiam-se pelas ruas de corda ao pescoço. Houve logo quem viesse falar de fraude e evasão fiscal e da necessidade de as combater com o fim do sigilo bancário e cruzamento com os dados do património visível das famílias empresariais. Pelo meu lado, que conheço os princípios religiosos em que fomos formados, acredito em todo o povo católico. Eles eram lá capazes de cometer o pecado de roubar o estado de todos nós, mentir e exigir indevidamente serviços ao estado! Não. Eu fico é cheio de pena e rogo a cada um dos contribuintes que invente dinheiro para que o estado possa subsidiar os empresários que vivem abaixo da linha de pobreza. Penso mesmo que aqueles números horríveis sobre a pobreza estão a ser mal interpretados, já que o que devemos ter é uma bolsa de empresários sem abrigo e sem sopa e são precisas medidas de novo tipo. O nosso problema de pobreza é de um novo tipo: sabemos que o filho do patrão vai às aulas num bmwz3 da moda, mas, na privacidade das casas, é só pobreza envergonhada e falta de pão. A primeira medida de apoio aos nossos pobres empresários deve passar por acabar com rendimentos mínimos garantidos e similares. Penso mesmo que, caso o agravamento da carga fiscal sobre os trabalhadores por conta de outrem não chegue, se deve activar um pedido de ajuda internacional para debelar a pobreza persistente do nosso empresariado. Claro que, se algum confessar o pecado da gula e da fuga ao fisco, merece uma absolvição e “nada de propósitos firmes de emenda” que há muito a fazer com o dinheiro que, a cair nas mãos do estado, é mal gasto.
Pena que as semanas ricas não paguem impostos.

No Sameiro, Braga, algum diabo deitou fogo em vários locais ao mesmo tempo e o inverno fez-se inferno em vez de primavera. As árvores de Águeda, Sever do Vouga e Oliveira de Frades arderam porque alguém se deve ter posto a queimar os restos de alguma lida ao fundo de uma leira. Uma semana de vento pode abrir uma temporada de incêndios. Pobres bombeiros. Pobre mata. Não podemos atear fogueiras ao vento.

Banalizamos os gestos dos chicos espertos que fogem aos impostos e tolhem todas as iniciativas da sociedade. E banalizamos a coragem de fazer coisas erradas sem medo consequências. Na estrada quando conduzimos para matar ou se ateamos uma fogueira e pomos em risco a casa e a vida das pessoas. Se uma ponte cai e temos de chorar os mortos, porque haveríamos de chorar pelos culpados? Pobres de espírito, rica semana!

Absolvamo-nos uns aos outros!

[o aveiro; 1/04/2004]

Felgueiras

Em 1974/5, era eu aspirante ou alferes miliciano dos serviços de cartografia do exército, andei a fazer reconhecimentos em Felgueiras e Fafe. Passaram 30 anos até que lá voltei ontem. Encontrei Felgueiras, de novo, agora mudada, de vila em cidade. Não vi a Fátima. Depois da saída da autoestrada e até Felgueiras é que as estradas ainda devem ser bocados da antiga. Quando por lá andei tinha de parar amiúde para provar o vinho às portas ou na pensão onde me alojava. [Sabem quantas vezes tentei entrar em Fafe fardado
nesses tempos? Sem conseguir. Há mapas difíceis.]

No regresso, por razões matemáticas, recebi umas garrafas de vinho de Felgueiras. Como hei-de reconhecer alguma mudança no sabor do vinho?

;-)

As flores que enfeitavam de cores
o prado do teu cabelo
foram comidas pelos teus piolhos
hervíboros

Os pequenos esquilos que brincavam na floresta
dos teus cabelos
foram comidos pelas tuas pulgas
carnívoras

Os tubarões que nadavam no mar dos teus olhos
sob as franjas do teu cabelo
foram devorados pelas carraças
das tuas mesquinhas ideias

Tens tão pouca graça agora
que eu já nem sei se a gente inda namora.

:-)
[escrito vai para uma eternidade, reencontrado hoje]

Perguntas sobre o terrorismo.

António Aurélio Fernandes recomendou a leitura do artigo - Perguntas sobre o terrorismo - de Frei Bento Domingues, poublicado no Público de domingo. Eu acho que ele tem razão. Para o caso de alguém passar por aqui, fica a recomendação.

A eternidade.

Saio da escola para a manhã de vento. Inclinado para a frente, contra o vento procuro uma parede ao sol. Nos últimos dias, o vento mais forte mudou-se para Aveiro. Ouvimos as suas zangas dentro e fora de casa. Acabamos por nos habituar à sua presença intrometida em todos os lados da nossa vida.
Antes de alcançar a salvação da parede do Museu, ouço o meu nome. Viro-me para trás. Uma cara sorridente começa a dizer: - Claro que não se lembra de mim! E eu ensaio uma das minhas saídas de velho: - És o …! Ele corrige-me na primeira parte do nome já que eu tinha acertado na terminação. Também nunca consegui melhor em qualquer dos sistemas de apostas mútuas autorizadas e mesmo a terminação é rara.
A conversa não vai durar mais que uns momentos.
- Também não admira que não se lembre. Quando fui seu aluno, tinha 16 anos e agora tenho 38. Já lá vão 22 anos.
- E que fazes agora?
- Agora trabalho numa ETAR. E comecei a fazer trabalhos em madeira. Tirei um curso de carpintaria.
- A última vez que te vi, trabalhavas aqui perto no balcão da …
- Essa foi à falência há muito tempo! Depois disso, já andei 5 anos embarcado. Mas não era pescador. Trabalhava na copa.
- Estás muito mais magro.
- Estive doente. No mar, as condições das pessoas que lá trabalham são más e, quando o corpo estava mais fraco, apanhei-a. Fiquei parado e quis fazer uma grande dieta.
Depois de mais umas palavras para a troca, sobre a minha vida de sempre sem mudanças nestes 22 anos que passaram, despedimo-nos. Sigo até á parede do Museu que me esperava. Não chega e vou ter de me sentar encostado ao vidro da janela do café para poder ser acariciado pelo calor do sol.

Comecei a pensar nas notícias terríveis sobre a miséria em Portugal, que não pára de crescer nestes tempos de politicas promotoras do desemprego do presente em nome do emprego do futuro.

É então que fico a saber que Ariel Sharon assassinou o velho Ahmed Yassin, paralítico chefe espiritual do Hamas. Nem o velho Ahmed, sempre a contar o tempo em eternidades de vinganças, tinha conseguido fazer tanto pela guerra. Há dezenas de anos que Ahmed ansiava, sem o conseguir até agora, tornar-se um mártir da causa palestiniana. Uma rajada fria de estupidez criminosa varre as ruas do mundo, enquanto regresso à escola.

E o vento de Aveiro continua a soprar, mas já não presto a mínima atenção a qualquer das suas brincadeiras. Preciso que voltem a chamar-me pelo nome.

[o aveiro; 25/3/2004]

o outro

Por muitas razões que não vêm ao caso, António Florentino poderia ser considerado o outro. Não se sabe bem porquê, mas várias vezes ele declinou essa identidade e profissão. Da lista de mil nomes que lhe apresentaram à data de nascimento, ele assinalou a última linha correspondente a Outro. Quando, no nono ano, lhe pediram que assinalasse a profissão que escolheria entre as trezentas páginas de profissões presentes no cat?logo do orientador profissional, ele escolheu Outro. No estado civil, ele não escolhe solteiro, nem casado, nem viúvo, nem divorciado, nem separado de facto. Ele escolhe Outro. No que respeita ao sexo, incapaz de optar pelo M de masculino ou pelo F de feminino, ele desenha cuidadosamente um novo quadradinho, onde escreve a sua cruzinha e por cima Outro. Quem não o conhece, deve pensar que António Florentino não se enquadra nesta sociedade e é completamente marginal. Mas não é verdade. Ele é sociável, não morde e parece-nos feliz à vista desarmada.
Um psicoterapeuta, que o queria ajudar, deu-lhe a escolher um de entre os diagnósticos: "problemas na infância", "problemas na adolescência", "problemas na puberdade", "problemas na hipófise", "problemas na mão direita de deus". E ele, depois de muito pensar, escolheu Outro.

António Florentino é um caso. Dual é o caso do Outro, mas para este muito mais difícil. Sempre que Outro tem de efectuar uma escolha, escolhe António Florentino.

[pretextos 56; 1993]

embora

embora vibre
o dourado junco está morto:
à malícia do vento ainda obedece

o dourado vegetal é uma cor de moribundo
que se despede numa falta de ar e ao ar se esquece.


onde os cabelos são juncos e o meu corpo apodrece
a água parada transparece

tonino guerra

26. La dmènga specialmént

La dmènga specialmént
quant ch' u n gn'è niséun ad chèsa
e a sémm a là vérs la fóin ad zógn,
a vagh ad fura se teràz
par stè a sintói che adlà di méur
la zità la sta zétta.

26. La domenica specialmente

La domenica specialmente
quando non c'è nessuno in casa
e siamo là verso la fine di giugno,
vado fuori sul terrazzo
per stare a sentire che al di là dei muri
la città sta zitta.


41. La farfàla

Cuntént própri cuntént
a sò stè una masa ad vólti tla vóita
mó piò di tótt quant ch'i m'a liberè
in Germania
ch'a m sò mèss a guardè una farfàla
sénza la vòia ad magnèla.

41. La farfalla

Contento proprio contento
sono stato molte volte nella vita
ma più di tutte quando mi hanno liberato
in Germania
che mi sono messo a guardare una farfalla
senza la voglia di mangiarla.


[tonino guerra; il poverone]

Os olhos de Madrid.

Entraram nos comboios da madrugada dos trabalhadores e estudantes dos arredores de Madrid e neles abandonaram as suas mochilas carregadas de bombas. Que viram eles nas caras sonolentas daqueles filhos da madrugada no instante em que lhes encomendavam a morte? Na sossegada manhã das rotinas das multidões de trabalhadores, os assassinos disfarçam-se como peças humanas das mesmas rotinas.
O que o terrorismo tem de mais terrível é ser prova de que o homem, sentado no banco em frente ao meu sorriso confiante, pode ser o assassino da multidão de que faço parte. É a sua humanidade (ou a falta dela) que nos aterroriza. Porque é que voltamos sempre atrás, como se perseguíssemos a nossa própria sombra? Com que olhos olhamos por cima dos ombros?

De nacionalidades, culturas e religiões diferentes, duzentos inocentes foram sacrificados em Madrid, muitos deles imigrantes ilegais na fortaleza europeia. Todos morremos um pouco na manhã da última quinta feira de Madrid. E todas as pessoas vulgares se sentiram madrilenos feridos pela incerteza dos dias do ódio e das guerras sujas.

A frieza nas mentiras do governo de Espanha sobre os factos e os autores dos atentados dão uma medida do que é hediondo na luta politica pelo poder ou pela sua manutenção. Ficamos também a saber como os órgãos de comunicação social podem ser controlados pelos governos no poder.

E resta-nos a esperança da mobilização dos povos de Espanha. Já se tinham rebelado contra a participação da guerra no Iraque. E agora, nas ruas, esse mar de mágoas, exigiram a verdade ao governo do Partido Popular sobre o que se tinha passado de tal modo que se sobrepôs à manipulação do governo, tendo alterado o sentido de voto e derrotado o partido da guerra. A luta pela verdade derrotou o partido do governo e da manipulação mentirosa.

Aos nossos ouvidos, soam familiarmente (mas estranhas) as vozes de alguns analistas a estranhar que Zapatero do PSOE venha confirmar que vai cumprir a sua promessa eleitoral de retirar as tropas espanholas do Iraque. Dizem que é um perigo, já que tal gesto pode ser interpretado como uma cedência ao terrorismo e pode ser um incentivo a novos actos de terror. Devotados ao estilo de vida do consumo das suas ideias, achariam perfeitamente natural que a democracia fosse indiferente ao voto do povo. A sua sabedoria leva-os a pensar que só é democracia aquela que confirma, no plano do poder, a sua opinião, que é, espanto dos espantos!, a mais servida à mesa dos mais poderosos.

Somos todos madrilenos nestes dias. Tanto na mágoa e na radical oposição ao terrorismo como na oposição ao jogo sujo e à mentira como armas politicas. Contra quem somos madrilenos?

[o aveiro; 18/03/2004]

lata de bolachas

havia uma lata de bolachas. cheia dos trocados da infância.
tantos anos a esqueci que as poupanças da infância se perderam com as mudanças das moedas.
hoje lembrei-me delas e fui buscá-las, à infância e à lata.
despejei as moedas inúteis e, em seu lugar, para dentro da lata, amassei a esperança que me resta para dela me esquecer.
e guardei a lata, no lugar das coisas esquecidas, a lata de bolachas e a infância.

desde hoje sou madrileno e vivo num lugar povoado pela dor de saber.

pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui