Estrela Rego

Ele deve gostar de saber que eu penso que tenho um amigo, agora e para sempre. Para ele, neste tempo em que morreu para esta vida, começou o tempo de uma outra vida. Ele acreditava nisso e nós, por sabermos dele, acreditamos de outro modo e damos-lhe vida na caixa da memória, essa em que guardamos os instantâneos de encontros felizes. Morreu José Estrela Rego e eu já sinto falta dos "respingos salvíficos do atlântico azórico" com que ele nos brindava nas despedidas.
Há quem se espante com a possibilidade de algum dia termos podido falar um com o outro sem escolher as ideias (para esconder algumas delas das conversas). Um dia estive com ele nas casas da sua vida e guardo a nossa conversa em viagem como "a obra impossível" a que prova como o mundo dos humanos bem podia ser perfeito.




vi(r)agem


Num dia como os outros
solta-se entre as palavras
um fumo enrolado pelos açores

e o brinde tinto lava uma terra inteira:
como uma trave na arquitectura da casa da calheta
a gargalhada comum voa nos corredores

até se enterrar no sagrado chão
onde o chão não existe
porque uma mansa vaca pasta a nossa passagem
pelo mundo.

Num dia como os outros
desistimos de olhar para longe
olhando para dentro.

O beija-flor

Desde pequeno que me habituei a chamar a atenção. Faço biquinho como se fosse chorar quando não me ligam ou como se fosse o mais inteligente de todos e tivesse acabado de descobrir a pólvora, quando os outros fixam os olhos para o pedestal em que me inventei como estátua.

Depois aprendi que vale a pena aparecer ao lado dos mais poderosos, ainda que seja a servir-lhes café, pontuando as suas observações com OK, ámen ou KO. Na televisão, claro. Havia já muitos programas de televisão que tinham tornado famosas pessoas até por serem capazes de passar meses fazendo nada por encomenda. Havia mesmo um menino homem que se tinha tornado famoso por aparecer sempre atrás do repórter-mira do operador de câmara que filmava multidões. Sem perder um plano das câmaras que filmaram multidões do psd, cheguei a primeiro ministro! E não é que fiz chefe das tropas quem nunca tinha sido sequer soldado raso. Não é "nice"?

Convenci-me que podia ser notícia maior, alvejando com desemprego os meus concidadãos e critica os que não tiveram pontaria para isso. Perdi o norte da consciência social e passei a defender o salve-se quem puder. Quando se afogava alguém nos naufrágios sociais por não ter dinheiro nem bóia, sossegava a minha consciência garantindo que deviam ter tido cautela e pago seguros em vez de comer, já que o estado não pode ser uma imensa bóia. Ai, a forma liberal como participei ao lado dos poderosos cabos de guerra! A insensibilidade máxima para com os náufragos culminou com a eliminação e penúria de todos os institutos de socorros a náufragos, deixando naufragar no mar liberal, a saúde, a educação e a ciência, para alem de outras que nem me lembro. Mas que espero não ter esquecido nesses exaltantes momentos de pacovice financeira em que percebi que o produto interno bruto não tinha a ver com o produto interno de matemática secundária, essa que troquei pelo direito para depois me ultrapassar pela direita.

E não é que chego a chefe dos comissários europeus! Com um pais inteiro a falar da honra que é ter-me como testa de ferro do mundo dos poderosos, não podia ser melhor! É a glória.

Para a glória ser completa, preciso de ficar nos livros de história como o tipo que ganhou o euro 2004 e ganhou muitos euros enquanto subia ao pico da Europa dos 25 que me convidaram. E que a história não fale dos ranhosos que não conseguem ver a auréola de santo padroeiro de Portugal em peregrinação e teimam em ver uma auréola da nódoa que sai de Portugal para se espalhar em volta, na Europa.


[o aveiro; 1/7/2004]

Os profissionais patriotas

Precisamos de uma vitória ou outra, uma vez por outra, numa coisa ou noutra. De vez em quando, uma selecção de trabalhadores de um dada especialidade é formada para se defrontar com selecções de trabalhadores da mesma especialidade de outros países.

Quando acontece a necessidade de selecção, não hesitamos em procurar os portugueses que mais se destacam mesmo que eles estejam emigrados. Há casos em que procuramos no estrangeiro os portugueses que desprezámos e empurrámos para o estrangeiro por termos dificultado a sua vida por cá. Do mesmo modo, tem acontecido estranharmos a diferença entre o tratamento que damos aos que querem imigrar quando o querem, daquele que é dado aos que entram com contratos milionários ou que, depois de entrarem, acabam por mostrar uma competência profissional de excelência, capaz de ombrear com profissionais de outros países. Quando tal acontece, nem é raro que aceitemos que esses imigrantes passem imediatamente a ser portugueses.

Assim tem acontecido especialmente com os atletas e as selecções de atletas. Assim, de repente, lembro-me de dezenas de emigrantes e um ou dois imigrantes. E dou por mim a ficar todo contente. A nação do futebol e das selecções não é uma coisa de pessoas, muito menos da sua naturalidade ou residência. E a pátria do futebol é só uma coisa de tão diminuta razão como é a adesão irracional a um clube.

Como explicar a minha alegria com as vitórias da selecção nacional de futebol neste Euro 2004? E a bandeira que se agita na minha varanda?

Fico maravilhado com o bailado, com os passes de bola que vão de um pé até outro e parecem tabelar naturalmente para ir para outro pé de onde parte para algum sítio certo. Algumas das coreografias mostraram-se esplendorosas aos meus olhos. É claro que tal não é propriedade da selecção portuguesa e dos profissionais portugueses. Algumas vezes, fico com a sensação que até é mais bonito o baile mandado das outras selecções de folclore. Também não é pois a prática profissional do grupo de baile mais bem pago do país que me leva a esperar só as vitórias da selecção. Até porque às vezes damos por nós a querer a vitória mesmo quando jogamos pior que os adversários.

Desisto! Sem pôr em causa a noção de nação e sem destruir a pátria, é a irracionalidade que na minha alma festeja as vitórias da selecção de Madaíl e Scolari e outros jogadores desta bolsa (ou a vida!) que não me são simpáticos e até podem ser de outra nação que não é a minha. E talvez por isso haja quem não me considere patriota e nacionalista. Dos seus pontos de vista, devem ter razão.

Viva Portugal!

[o aveiro; 24/06/2004/]

pequena diferença na europa.



Nem um BEijo de feira em Aveiro. E, no distrito, o Bloco de Esquerda triplicou o número de votantes, afirmando-se como "terceira" força política na maioria dos concelhos, tão pequena quanto potente nas diferenças. No concelho de Aveiro, assim é: pura força das ideias e seu movimento.



Acompanhei parte da campanha das eleições para o parlamento europeu e participei num painel sobre o tema aqui mesmo em Aveiro. Afligiu-me que nunca sobrasse tempo aos políticos para explicar que politicas vão defender no parlamento europeu. As campanhas partidárias ficaram marcadas mais pelas quezílias e questões de baixa politica interna e menos pelas diferenças politicas. Bandeirinhas, saquinhos, beijinhos, ? e papagaios a imitar aves de rapina que voam alto demais e fingem estar a ver o que de nós escondem.
Fiquei convencido. Os grandes partidos PS e PSD não esclarecem as diferenças, porque têm politicas europeias mas não têm diferenças e sobra-lhes não mais que diferenças de estilo de mandador no baile da alternância. A julgar pelo que bradam aos céus, ao poder não interessa muito que os portugueses escolham entre diferentes politicas europeias, preferem que se pronunciem sobre o governo da nação e a astúcia no negocismo dos fundos estruturantes do Portugal feito à sua medida.

A noite dos resultados não podia ser mais consistente com a campanha opaca!
A coligação PSD/PP, que quer amarrar Portugal à sua força, descobre que entre os abstencionistas estão muitos dos que apoiam a coligação e lamenta que os indicadores da ?retoma?, publicados pelo INE, não tenham sido suficientes para convencer o eleitorado a retomá-los (Assim mesmo!?!) Garantem que vão para a Europa trabalhar por Portugal e esperam que os outros deputados eleitos façam o mesmo. Do outro lado, a aritmética conduz toda a gente ao mesmo: o governo que começou a legislativa com maioria agora está reduzido ao apoio de um terço dos votantes e deve tirar lições da maior derrota de sempre infligida a uma coligação de direita e extrema-direita.

Convenhamos que, para o que estava em jogo, é mais sério somar os votos do PS aos do PSD do que somar os votos do BE aos do PS. Sem dizer o quê, Durão disse o essencial: ?As nossas ideias(?) de Europa ganharam e vamos fazer o melhor por Portugal?. Não se estava a referir a outra coisa senão aos 19 deputados PS+PSD. Para dar valor ao voto, ao BE bastava ter falado na plataforma europeia para a sobrevivência mínima e do reforço das seguranças sociais mais débeis, da luta contra o liberalismo selvagem nos sectores essenciais (a água, energia, etc) , na paz?. Dizem-me que as pessoas não votaram em politicas para a Europa e o que percebem e esperam é aquilo que lhes disseram.

Até quando vamos fugir da Europa?

[o aveiro; 17/06/2004]

Votar pela EUROPAZ

Eu não tenho os mesmos interesses dos senhores Barroso, Paulo Portas e dona Manuela. Por isso, não vejo que os meus interesses possam ser representados pelo senhor de Deus Pinheiro. Não tenho os mesmos interesses dos senhores tipo Sousa Franco, até porque ele já disse que os seus interesses, não sendo os mesmos da coligação de direita, são os mesmos do PPD.

Eles querem que eu, peixe-miúdo ou arraia-miúda, acredite que meus são os seus interesses de tubarões. Não se cansam de repetir que defendem a mesma europa que eu e que a sua europa é boa para mim. Tentam mesmo dizer-me que os deputados que eu eleger, se forem de algum cardume de não tubarões, não podem fazer senão política de tubarões e deixar-se comer.

Ora isso não é verdade. Toda a gente sabe que não há um só Portugal e que o portugal de quem cai no desemprego hoje não é o de quem cria e justifica cada lugar de desemprego e o respectivo precário subsídio português. O portugal armado até aos dentes com a mentira e na vassalagem aos senhores da guerra não é o meu. Os negócios privados na água, na energia, na educação, saúde e solidariedade social são do país deles. O portugal xenófobo e do trabalho sem direitos é o portugal de "durão & portas, s.a". É um portugal selvagem e de vassalagem que eles exportam para fora, nos seus sorrisos bajuladores. Para dentro, são cobras cuspideiras de tranquilizantes fundos estruturais, canalizados para portugal que enriquece por a esmola ser grande e empobrece enquanto subsidia o "pato-bravo-novo-rico".

Quantas Europas diferentes cabem na Europa? Os nossos ?construtores? portugueses passam a vida a colocar-nos no pelotão da frente. Alguém acredita que os países que realizaram referendos e votaram contraditorios sobre diversos aspectos da adesão e do desenvolvimento da Europa comunitária estão atrás de nós? Há mais Portugal para além do "Portugal, S.A.". Há outra Europa e é por essa que vou votar: Europa com políticas de paz e contra a guerra; dos serviços públicos europeus com defesa do emprego e pela imigração com direitos, do co-financiamendo dos sistemas de protecção social dos mais débeis, do equilíbrio ecológico e de poupança da energia. Eles falam dos fundos estruturais como quem agita um cheque-brinde. E pedem-nos cheques em branco, enquanto se disfarçam de palhaços mal educados com piadas sobre a vidinha de cada um e se calam sobre a vénia que fazem.

A Europa não é só uma fortaleza ou empresa multinacional. Há a Europa dos cidadãos e eu voto pelas políticas da cidadania europeia livre e solidária com o mundo. O meu voto tem a direcção e o sentido do bem comum.


[o aveiro; 10/06/2004]

as caras mais a cara do burro feliz