espírito aberto

exílio

eu vou cá para fora lá dentro de mim
deste canto exporto olheiras e maus olhados
e óleo de pavão que é dos mais importados
no país onde ninguém se importa antes do fim.

para deleite da canalha

como um palhaço fazes a pirueta
que te faltava para seres o país da treta
e saltimbancando um pouco mais para a direita
adormeces na cama de visgo onde a canalha se deleita

o facto preto das cerimónias

finalmente tenho razões
para chorar e rir como só eu sei
há uma procissão de figurões
e no andor vai santana nua feita rei

Em segundo lugar...

Em primeiro lugar, a união nacional em torno da selecção nacional (de futebol). Todos juntos, vibrámos com as vitórias suadas da selecção e ficámos só ligeiramente desiludidos com a derrota perante os gregos. Comemorámos o segundo lugar e a vitória de uma alegria que parece de todos contra a alegre tristeza de cada um.

Em segundo lugar, ficou tudo o que não foi futebol. Para segundo lugar, foram os problemas e até o Durão Barroso que, de gravata verde e vermelha, para dar sorte!, apareceu nas tribunas vip sem as monumentais vaias que o brindaram antes.

E é assim que, calmamente, Durão Barroso pode sair de fininho a meio do mandato de um luso para um euro cargo, transformando o tal seu governo de salvação nacional de coligação num governo de gestão da coligação até que alguém aceite o coelho que o psd sempre teve na cartola, embora em segundo lugar. Em nome de uma Europa carente do Barroso, este deixa a salvação da nação a meio. Mas tudo se passa em nome da pátria, da honra da pátria ou dos interesses da pátria. Constatemos que há uma pátria particular deles que vai enriquecendo, embora a pátria em geral vá empobrecendo. Começo a acreditar que estes políticos são movidos pelos interesses particulares da pátria.

No meio desta confusão toda, tentam mesmo passar o presidente desta república para o segundo lugar. Tudo no maior respeito, claro. Enquanto esperam que ele cumpra o seu dever de fazer o que eles querem que seja feito pela estabilidade do país, da Europa toda e até das alianças que cabem nos dedos deles.

O segundo Santana que viu, nos astros, esta sua subida a primeiro, faz pose de estado e votos firmes de emenda daquilo que todos sabem. Diz ele que de outros grandes estadistas se disse no fim que eles tinham sido isto ou aquilo. Com Santana, as pessoas poderão condenar o que ele foi, garantindo ele que deixará de ser quem é, em nome dos altos interesses da nação, da pátria, da salvação... até da sua alma. Quem pode resistir a salvá-lo da má vida e a ajudá-lo a encontrar o bom caminho? Se o deixarem salvar a pátria, a pátria salva-o!

Isto é mesmo tudo a sério?

Em segundo lugar? Não há melhor lugar para chegar a primeiro... ministro. Neste circo, aceita-se um cargo como quem engole o trampolim para o próximo.


Nota final:
Últimos na lista da Europa desenvolvida, primeiros no futebol, Portugal e Grécia apresentam-se a concurso dos melhores organizadores de eventos desportivos a que tudo sacrificam. Será este o caminho do desenvolvimento que nos traçaram?


[o aveiro; 8/7/2004]

a cadeira da casa

entras
e sentas-te nos meus joelhos:

a última cadeira da casa que ainda não espatifei por cobardia.

brando

vi-te nas telas: nas planícies incendiadas
és o bisonte que desafia com os cornos
a nuvem levantada pelos próprios cascos.

Sophia

No ponto onde o silêncio e a solidão
Se cruzam com a noite e com o frio,
Esperei como quem espera em vão,
Tão nítido e preciso era o vazio.

(Sophia)

Sophia

Intacta memória - se eu chamasse
Uma por uma as coisas que adorei
Talvez que a minha vida regressasse
Vencida pelo amor com que a lembrei.

(Sophia)

Estrela Rego

Ele deve gostar de saber que eu penso que tenho um amigo, agora e para sempre. Para ele, neste tempo em que morreu para esta vida, começou o tempo de uma outra vida. Ele acreditava nisso e nós, por sabermos dele, acreditamos de outro modo e damos-lhe vida na caixa da memória, essa em que guardamos os instantâneos de encontros felizes. Morreu José Estrela Rego e eu já sinto falta dos "respingos salvíficos do atlântico azórico" com que ele nos brindava nas despedidas.
Há quem se espante com a possibilidade de algum dia termos podido falar um com o outro sem escolher as ideias (para esconder algumas delas das conversas). Um dia estive com ele nas casas da sua vida e guardo a nossa conversa em viagem como "a obra impossível" a que prova como o mundo dos humanos bem podia ser perfeito.




vi(r)agem


Num dia como os outros
solta-se entre as palavras
um fumo enrolado pelos açores

e o brinde tinto lava uma terra inteira:
como uma trave na arquitectura da casa da calheta
a gargalhada comum voa nos corredores

até se enterrar no sagrado chão
onde o chão não existe
porque uma mansa vaca pasta a nossa passagem
pelo mundo.

Num dia como os outros
desistimos de olhar para longe
olhando para dentro.

O beija-flor

Desde pequeno que me habituei a chamar a atenção. Faço biquinho como se fosse chorar quando não me ligam ou como se fosse o mais inteligente de todos e tivesse acabado de descobrir a pólvora, quando os outros fixam os olhos para o pedestal em que me inventei como estátua.

Depois aprendi que vale a pena aparecer ao lado dos mais poderosos, ainda que seja a servir-lhes café, pontuando as suas observações com OK, ámen ou KO. Na televisão, claro. Havia já muitos programas de televisão que tinham tornado famosas pessoas até por serem capazes de passar meses fazendo nada por encomenda. Havia mesmo um menino homem que se tinha tornado famoso por aparecer sempre atrás do repórter-mira do operador de câmara que filmava multidões. Sem perder um plano das câmaras que filmaram multidões do psd, cheguei a primeiro ministro! E não é que fiz chefe das tropas quem nunca tinha sido sequer soldado raso. Não é "nice"?

Convenci-me que podia ser notícia maior, alvejando com desemprego os meus concidadãos e critica os que não tiveram pontaria para isso. Perdi o norte da consciência social e passei a defender o salve-se quem puder. Quando se afogava alguém nos naufrágios sociais por não ter dinheiro nem bóia, sossegava a minha consciência garantindo que deviam ter tido cautela e pago seguros em vez de comer, já que o estado não pode ser uma imensa bóia. Ai, a forma liberal como participei ao lado dos poderosos cabos de guerra! A insensibilidade máxima para com os náufragos culminou com a eliminação e penúria de todos os institutos de socorros a náufragos, deixando naufragar no mar liberal, a saúde, a educação e a ciência, para alem de outras que nem me lembro. Mas que espero não ter esquecido nesses exaltantes momentos de pacovice financeira em que percebi que o produto interno bruto não tinha a ver com o produto interno de matemática secundária, essa que troquei pelo direito para depois me ultrapassar pela direita.

E não é que chego a chefe dos comissários europeus! Com um pais inteiro a falar da honra que é ter-me como testa de ferro do mundo dos poderosos, não podia ser melhor! É a glória.

Para a glória ser completa, preciso de ficar nos livros de história como o tipo que ganhou o euro 2004 e ganhou muitos euros enquanto subia ao pico da Europa dos 25 que me convidaram. E que a história não fale dos ranhosos que não conseguem ver a auréola de santo padroeiro de Portugal em peregrinação e teimam em ver uma auréola da nódoa que sai de Portugal para se espalhar em volta, na Europa.


[o aveiro; 1/7/2004]