Marcha lenta.

No dia em que escrevo esta crónica, é notícia a marcha lenta dos agricultores da margem esquerda do Guadiana. Não lhes chega a decisão do governo que os dispensa dos pagamentos à segurança social por um determinado período e exigem a declaração de calamidade como forma de responder à grave situação de seca extrema deste ano. Notícias são os alertas vermelhos, laranjas e amarelos face ao calor excessivo que afectará particularmente alguns ou todos os distritos. E os alertas do Serviço Nacional de Bombeiros para fazer face à época de fogos florestais que se adivinha extraordinária. Vemos os incêndios apressados a quererem bater os seus recordes em hectares de pasto das chamas. E os maus votos europeus. E os desempregados que vão nascendo. As notícias aí estão mais que muitas e apressadas, capazes de incendiar o país até onde não há fumo nem fogo.
Mas é a marcha lenta a tomar conta de tudo. Os meios aéreos ainda não chegaram para os fogos. Trocam-se acusações sobre os negócios que se fizeram e fazem neste mundo de contratos de prestação de serviços para o combate ao fogo. Os ingleses adiam o referendo. Os trabalhadores, cansados e desgastados pelas notícias, temem perder empregos e salários e movem-se lentamente como sombras nestes dias de calor excessivo. Os agricultores do sul movem-se lentamente e obrigam o resto do trânsito à velocidade moderada por tractores e máquinas agrícolas que tomam conta das estradas. As manifestações nas cidades são também feitas em marcha lenta. Eu escrevo lentamente.

As palavras dos poderosos ameaçam sobre as consequências do não no referendo ao tratado constitucional europeu e do défice excessivo, tudo a provocar sacrifícios enormes a todos os portugueses. Ficamos a saber que o que decidem entre eles não pode ser posto em causa pelo voto dos povos e que o voto dos povos se transformou num perigo para a democracia. Os economistas acompanharam e guiaram o país até aqui. Puseram a economia e as finanças no centro de tudo. Exigem do povo que vote guiado pelos medos financeiros que eles vão ateando. O Durão vai mesmo cobrar uma multa pelo excesso de défice, em grande parte realizado sob o seu alto patrocínio. A vida olha-se sentada numa sala de espera.

Marcha lenta. Combustão lenta. Fogo posto seguramente. A combater por um povo de bombeiros voluntários.


[o aveiro; 9/6/2005]

se pudesse olhar pelas costas



o museu era também árvore. esta?



guarda a memória dos nocturnos preliminares de coito
a tua noite inteira vegetal que à luz do dia disfarçamos
no amarelo de beata o dedal onde escondemos o dado viciado.

de quem falam agora os projectores?
onde gravam as navalhas nomes e desamores?

esperavas por mim ainda hoje em cilíndricas peças serrado
por encanto sangravas não a seiva dos finíssimos ramos
antes infinitos galhos de uma floresta refúgio para nobre souto.

entardeceu



já é tarde
a sombra cresceu demais
numa tristeza cobarde
que não pode crescer mais

entardeceu
a barraca despida
o esqueleto contra o céu
sou eu

sombra da vida
sou eu

A geração rasca

Ao referir-se aos jovens estudantes de há uns anos atrás, Vicente Jorge Silva criou a designação de "geração rasca". Desde essa altura que debatemos se a atribuição dessa designação tinha sido bem ou mal feita, com base em acontecimentos como aqueles de propagandear o rabo descoberto ao virá-lo para a ministra, pedindo fotografia e filme para jornais e televisões. Infelizmente para nós todos, os jovens estudantes (e não só) não resistem a promover espectáculos e piores bebedeiras sem qualquer intenção política - veja-se o que se passa nas praxes, queimas, ... ou nos públicos locais de deboche autorizado e até incentivado pelo estado.
Sempre tive por certo que as designações são tão correctas como incorrectas. Depende do observador e do observado, do ponto de vista, do local de observação. No caso em estudo, eu sempre considerei que Vicente Jorge Silva tinha errado o alvo, até porque nem havia lugar a fechar aqueles manifestantes numa geração com o sentido que lhe era atribuído. Hoje e ontem, muitas daquelas manifestações são feitas por jovens (e encorajadas por adultos que as fizeram antes) e olhadas com complacência tolerante por muitos adultos (incluindo dirigentes das universidades, deputados, membros de governos, etc). Há várias idades para incluir numa mesma geração e há pessoas da mesma idade que não fazem, para esses efeitos, parte da mesma geração.
Já depois disso, Vicente Jorge Silva teve oportunidade de passar pelo parlamento com a eficácia conhecida. Nestes últimos dias, Vicente Jorge Silva deve ter percebido que tinha errado o alvo. Basta ver como todos os responsáveis se (des)tratam uns aos outros e como demonstram que não recuaram perante nenhuma aldrabice para conquistarem o poder ou parte do poder. António Guterres e Durão Barroso, Cadilhe e Cavaco Silva, Marques Mendes e Isaltino ou Valentim Loureiro, Santana Lopes e Portas,... mas também Constâncio, Pina Moura, Sócrates e Fernando Gomes e a chusma de economistas e advogados que mandaram no país desde o tempo em que este não sabia ler nem escrever até ao tempo em que se transformou numa quinta de celebridades sem saber ler nem escrever. Se há uma geração rasca, ela tem estes e muitos outros expoentes. Toda a semana passada li argumentos do punho dos expoentes a favor desta tese.
Se há alguma geração rasca, ela é a de Vicente Jorge Silva. A minha geração, afinal.


[o aveiro;2/6/2005]