o teu canto

Tanto te desejei. E, ao mesmo tempo, desejava
uma paz sem desejos, inerte, a paz do cemitério

para onde me carregavam em ombros os dias
que já passaram e os que ainda hão-de passar

até que eu faça o caminho de olhos fechados


para tudo e se parece que em vida por nada me espanto
é porque nada me espanta... nem mesmo a vida:

esse teu canto.

dia de don juan

(...)
Chamamos reunião-n a qualquer união de n conjuntos singulares. Para além dos elementos ou presenças, a cada reunião é associada um intervalo de tempo. Para uma reunião de n elementos (reunião-n) e para q inferior a n, chamamos reunião q-desesperada à reunião de n elementos em que q elementos desejaram que ela se tivesse realizado num outro intervalo de tempo ou num tempo que não existisse. Uma reunião-n q-desesperada é quasi-desesperada quando q=n-1. Convencionamos que qualquer reunião-1 é trivialmente quasi-desesperada já que os que ficam a falar sozinhos não contam. Uma reunião-n é desesperada quando é n-desesperada.
[Também não interessa a quem quer que seja saber porque é que eu considero quasi-desesperadas as minhas reuniões do dia de don juan, mas posso garantir que tudo o que aconteceu nesse dia pode não ter a ver com qualquer das definições da teoria que começo a desenvolver. Para mim, ou do meu ponto de vista, uma reunião é pessoalmente desesperada quando eu não estou interessado nela ou porque ela me dói qualquer que seja o motivo ou a falta dele.]
Há reuniões que começam nada-desesperadas e acabam quasi-desesperadas. Naquele dia de don juan, ninguém podia ser indiferente ao meu sofrimento e a reunião acabou por ser interrompida no momento em que acabava. Há sempre pessoas atentas ao meu sofrimento e não se incomodam quando eu interrompo as reuniões saindo para o ar como o ar viciado sai de um pulmão qualquer. De certo modo, muitas reuniões quasi-deseperadas passam a não desesperadas quando deixam de contar comigo como elemento. De certo modo, podemos encontrar alguma coerência nisto. Quem me conhece percebe bem o que quero dizer quando digo que uma reunião pode passar a desesperada pelo simples facto de contar comigo. Podemos dizer que contar comigo é condição suficiente para que uma reunião seja quasi-desesperada. Há mesmo quem tenha percebido que um mundo de reuniões felizes é possível sem mim e não é possível comigo.

As reuniões do dia de don juan? Não têm qualquer interesse. Só interessa cada uma das pessoas. Há cada uma!

(...)

dia de don juan

Na quinta feira, de madrugada, no regresso da noite do Porto, meti a cabeça de fora da janela do carro, em andamento acelerado numa auto-estrada, e deixei que os óculos voassem como voam os chapéus e as fitas do chapéu. Sabia já que, para voar, ser ave não é condição necessária. Aliás, a julgar pela aerodinâmica das galinhas que conheço, também não basta ser ave para voar. À lista de objectos voadores acrescentei eu óculos. Da próxima vez hei-de experimentar brincar com bróculos, já que, caso estes decidam voar para longe, é mais barata a sua substituição.

Fiquei a ver mal. Pelo tacto, consegui encontrar alguns óculos antigos que fui encavalitando no nariz até parecer que vejo aumentando o tamanho da letra no computador. Escrever não é problema. Sempre escrevi mal e posso continuar a fazê-lo já que pouco tem a ver com os olhos ou com a cabeça.

Chegados que fomos à sexta feira - dia de don juan - encontraram-se na biblioteca da minha escola finlandesa um grupo excurcionista de viciados em semanas de 50 horas de serviço público. Só que quase metade deles vinha da noite do porto do dia anterior, com mais ou menos sardinhas e mais ou menos desgostos demais. A acrescentar a esse desgosto de ser turista do Porto à luz do dia de don juan tiveram de manter-se acordados, vendo, ouvindo e falando comigo.

[Habitualmente já é dose letal qualquer encontro comigo e é, por isso, que mudam de passeio ao ver-me. Assim acontecerá mesmo quando for a enterrar por um daqueles estreitos carreiros empedrados que a câmara desenha para facilitar o trânsito dos novos mortos no cemitério. Isso será outra história.]

(...)

Sociedade dramática

Meses e meses de trabalho a ensinar e a aprender e ninguém nos liga coisa alguma. Ninguém está interessado no que ensinamos e muito menos no que aprendemos, dia a dia. Todos pensam que esse labor quotidiano nem existe. Para todos os efeitos essa escola do dia a dia é uma sociedade recreativa. Fora da escola todos têm a certeza sobre a sociedade recreativa de estudantes e professores. O melhor do mundo são as crianças - disse o poeta. O pior do mundo são os professores e já não há professores que prestem - diz o pateta.

Um locutor da RTP1 disse que os jovens procuram nos professores explicadores a explicação sobre aquilo que os professores professores não sabem explicar nas salas da sociedade recreativa. Não há tolo que não acredite piamente nas suas tolices. Tolices professorais são inventadas por professores que desertaram.

Ao chegar a época dos exames, a sociedade recreativa apresenta-se como sociedade dramática e toda a gente quer saber o que fazemos em todos os minutos do dia a dia desta sociedade. E toda a gente, que não quis saber o que ensinamos nem o que disso sobrou em aprendizagem, quer saber o tamanho do que os alunos escreveram como respostas nos exames mais de consciência que de ciência. Se cada acto do dia a dia do ensino pouco ou nada vale para fora da escola, já cada acto e acontecimento do dia a dia dos exames é tudo, é o todo, é o drama, é o clímax, é ... o máximo. Não é? Em tempo de exames, cada palavra de ministra ou secretário de estado é amplificada pelo megafone do drama sindical. Cada acto legítimo dos sindicatos agiganta-se no medo de governantes que falam e não fazem o que deviam e dizem fazer. E até aconteceu, neste país dramacrático, ver professores e educadores a chorar e a lamentarem ter sido obrigados a assinar contra sua vontade isto ou aquilo por medo de represálias. Temos de confessar que assim é difícil imaginar a escola da educação cívica, se ainda for verdade que civismo tem a ver mais com a coragem da decência que com a docência. O que nós passámos para aqui chegar. Aqui? E agora, 30 anos depois da revolução democrática!

Para completar o meu desgosto, vai o Presidente da República até Leça do Bailio, do alto seu senso comum, confirmar-nos que, como outros políticos, não conhece as escolas portuguesas e conhece as escolas finlandesas. Alunos finlandeses informaram o nosso presidente que, por semana, têm 22 horas de aulas e os professores estão pela escola 50 horas para os apoiar em tudo o que é preciso. Para o nosso Presidente poder concluir: "Está tudo dito!"

E eu? Eu quero ser um professor finlandês.


[o aveiro; 23/06/2005]

A partida

Recebi uma carta. Escreve o meu amigo: Quando soube da morte de V. Gonçalves, tive a intuição que A. Cunhal se seguiria. Não gosto destas intuições se bem que baseadas em cálculos de probabilidades...

Escrevo uma carta: Lá mais longe, onde o amarelo das searas dá lugar ao azul do céu, um poeta declama o silêncio. As palmas das mãos abertas ao vento norte, o poeta vira as costas a esta vida, ao sul do sol. Que frágil espelho separa a vida da morte!

Escrevo uma carta: Nós pintámos paredes quando o que queríamos dizer não cabia na voz. Enchemos a vida de fantasias e de fantasmas, companheiros de viagem, passageiros amores ou passageiros ódios que acendiam as nossas noites de Abril. Há dias em que nos parece que a memória não vai chegar para tantos fantasmas que decoram a multidão das paredes da nossa vida. E, no entanto, sabemos deles por os termos ouvido falar ou termos visto como caminhavam ou como piscavam os olhos quando nos olhavam sem nos ver.

Recebi uma carta. Escreve o meu amigo: As mães, hoje, perante as asneiras dos filhos nos autocarros, dizem-lhes alto "É isso que te ensinam na escola?" quando dantes, envergonhadas, diziam "É isso que te ensinam em casa?"

Pergunto-me muitas vezes como é que a escola nomeia os nossos fantasmas a quem os não conheceu. E muito menos sabemos como os nomearão as mães. Porque nós não vimos um filme nem ouvimos uma história. Porque vivemos o filme e vivemos a história, em cada partida do destino, perguntamos pelas sombras das nossas paredes. Na minha escola, havia um quadro na parede, desesperadas lantejoulas feitas de escamas brilhantes coladas no pano crú que é o melhor fundo para o poema de Eugénio que, no quadro, se pode ler bordado a linha verde esmeralda. Quem o irá ler?

Há dias em que nos lembramos que é a nossa vida que está de partida para outro lugar na memória. E percebemos também que é, por não nos habituarmos ao presente do futuro, que inundámos o nosso vale de sombras.

Como será nomeado o nosso tempo? Que dirá a escola sobre o que fomos? Que dirão as mães aos filhos? Nestes dias, em que os nomeados do nosso tempo deixam o seu lugar de pessoas ser tomado por personagens da ficção histórica, fincamos os pés no chão que pisamos e damos destino ao passo seguinte.

Aos meus filhos pequenos, eu só declamei o silêncio com a desculpa de não saber mais versos. Que lhes ensina a escola sobre a partida para fora de nós e do nosso tempo?

A partida não se ensina. Aprende-se, ... partindo.


[o aveiro; 17/06/2005]

pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui