Animal doméstico

A Cristina marca o hotel para as cachorras quando tem de sair em férias ou até mesmo em trabalho. Já que tem de os abandonar por algum tempo, abandona-os em beleza e com direito a massagens, beijos e corridas em campos de golfe.

Há quem não tenha cuidado algum com os seus animais domésticos e os abandone de qualquer modo. Nos últimos dias, recebi vários apelos a respeito de animais abandonados, quase todos cães, um ou outro gato. A associação "Animal" fez uma campanha com cartas à Administração Interna e a um Presidente da Câmara a protestar contra o abandono de muitos animais domésticos (ou não domésticos? em cativeiro?) numa vivenda. Não recebi notícia de abandono ou morticínio de animais de outras classes e espécies que são, como eu, mais ou menos domésticos (no sentido de que nos acompanham todos os dias) e não sei se isso é sorte deles.

Neste tempo de férias, eu sinto-me o animal doméstico que foi abandonado por quase todos no seu quadrado. Estou a a pensar até em mudar de nome para Arsélio Alegre.

a chave



não se abrem portas
ao topo das escadas

mas eu quero trepar

não pensar: trepar
até às portas do céu

a chave que as abre
não é uma palavra

como o desejo não é.

O mau tempo que se faz sentir.

Estas últimas semanas que por nós passaram a correr deixaram-nos para trás suados de calor e... de medo. O calor propriamente dito apareceu acompanhado pelo terror nos vários países do mundo agora acrescentados dos Reino Unido e Egipto. E pelos incêndios nas florestas (e fora delas) muito por todo o país. E por candidatos à Presidência da República. E por mais um Ministro dos que espera para chegar a Ministro das Finanças para mandar notificar-se a si mesmo sobre a necessidade de apresentar a declaração relativa aos impostos. E por mais um discurso incendiário de Alberto João Jardim.

Muito mau tempo. Muito mau mesmo. Até me custa escrever, mas... ardentemente espero uma nesga de bom tempo que para mim é, só pode ser, tempo fresco e molhado. Para apagar velhos incêndios e evitar novos incêndios, para arrefecer ânimos, para estragar a estação tola da espuma das cervejas e das ondas neste ano doente, para nos devolver a esperança da água doce e fresca.

É por isso que eu não consigo compreender os meteorologistas e locutores da televisão que, apesar dos incêndios e da falta de água para beber, para a agricultura e pecuária e de outros tremendos dramas que o calor dilata, chamam bom tempo a este tempo de calor e mau tempo a qualquer arrefecimento ou ameaça de chuvisco. E quando, como aconteceu hoje, tendo de falar da possibilidade de aguaceiros, falam de possíveis melhorias só lá para quinta feira com ar de quem lamenta a curta interrupção no inferno em que vivemos.

Onde é que vivem estes tipos que falam deste calor doente como sendo bom tempo? Não vivem no mesmo país que eu. Vivem com gosto na tripa de areia e betão que não está a arder, numa foz para onde corre a água das nascentes do país da seca.

Dou comigo a rezar por bom tempo - fresco e molhado em todo o país. Se Deus for grande, e quiser agradar a todos os gregos e troianos, que distribua bençãos agradáveis a todos. Pode deixar cair sol inclemente na eira deste hospital psiquiátrico do bronze, melanomas e afins. E deixar cair a água onde ela é precisa para apagar incêndios, para nos regenerar e repor a água necessária à vida.

Até porque suspeito que nesta terra de bueiros entupidos pelas folhas e pelo bom tempo, muita chuva dá inundação. Deus nos livre e guarde, já que a câmara pode estar entupida até não ver.


[o aveiro; 28/07/2005]

desde a radiografia

Já não lia um poema tão bonito desde o relatório que acompanhava uma radiografia aos meus pés, lembro-me bem.
Agora, de novo, por ter visto o seu esqueleto, o mesmo amigo dedicou às minhas mãos alguns versos que não resisto a tornar públicos:


observamos radiogramas em incidências
de face
e oblíquas.
a nível das articulações
carpo-metacárpica do primeiro
dedo de ambas as mãos
e interfalângicas distais vemos
fina
osteofitose no rebordo das superfícies
arrticulares, compatível com alterações
de osteoartrite.

alterações de idêntica etiologia estão
presentes a nível da articulação
interfalângica proximal
do quinto dedo
da mão esquerda.

quantas pedras?

quantas pedras amarras ao pescoço
como colar de contas a prestar

e, sem ninguém para te empurrar,
desceres até ao fundo do teu poço?

as caras mais a cara do burro feliz