desenho, logo existe




de algumas reuniões, sobra a beleza
dos desenhos de horrores...

ontem até amanhã

A semana passada passou como só um furacão sabe passar pelas nossas vidas. Nova Orleães passeia-nos nos nervos e ecoa-nos na cabeça porque dela fizemos templo ou rua apinhada da estridência de todas as misturas que o nosso sagrado mundo nos deu a ver. Toda a destruição nos custa, mas mais do que tudo nos custa a destruição dos pobres e daqueles pobres que ali vivem. ali naquele caldo cultural com todas as especiarias do mundo dos espíritos a boiar à superfície para que as possamos ver. Nenhum outro lugar do mundo escrito, gravado, fotografado ou filmado pode ser a montra fantástica que Nova Orleães sempre foi.
O furacão devolveu-nos a ingenuidade ao olhar. Lá onde está Nova Orleães, face à adversidade de uma calamidade natural há a mesma fragilidade da pobreza de qualquer outro lugar do mundo. Nova Orleães ensina-nos que estamos abandonados em todos os lugares e que nos resta clamar por ajuda naqueles dias em que a televisão já veio para nos mostrar ao mundo inteiro sem podermos ter o mundo inteiro de volta já que a ajuda ainda não se avista no horizonte.
Eu sou um velho, com a barba por fazer, sentado numa cadeira de baloiço do alpendre que ameaça cair. Olho para longe que é nem sei bem onde. Sonho tirar uma voz rouca de uma orquestra que só quer ser rápida mesmo quando cai numa sonolência de não saber bem que língua falar quando falo ou toco seja que instrumento de melancolia for. Não sei se me vi assim nos filmes dos meus desejos, ou se fui capa de um disco de não sei quantas rotações.
Fico-me para aqui a passar as contas de um rosário entre os dedos e a rezar para ter este meu mundo de volta, não tão pobre e abandonado como o furacão mostrou estar, mas com tudo o que é do mundo bom e mais protegido das tempestades naturais e humanas. Este velho crioulo não tem forças para mais do que para juntar a sua voz ao coro dos amigos do mundo inteiro que querem Nova Orleães de volta.
Volto para lá onde nunca estive. Revejo-me a passear de memória nas ruas, a esquecer-me de mim no carnaval, a caminhar na arquitectura do lugar, nos sopros e seus ecos dos corredores que se abrem como ruas do romance que li ou vi.
Quem pensar que pode fugir a esta reconstrução dos alicerces do espírito que Nova Orleães exige, está a pensar em fugir para uma terra de ninguém, vazia.
Volto para Nova Orleães. Quem não volta?

[o aveiro; 8/09/2005]

de costas voltadas




viraste-me as costas e já não sei que face é a tua
ou como te seguras ainda de pé depois de tantos dias e noites
sem te teres sentado

tudo porque não queres ver-me embora fiques aí mesmo (sinto-te!)
ao alcance da ternura da minha mão
caso pudesse virar-me e a minha mão não fosse insensível
como a tua

feita de pedra.

ouvi mesmo agora...

Ouvi mesmo agora dizer
(a um daqueles tipos importantes que vão à televisão dizer as coisas importantes)
qualquer coisa como:

... os portugueses nunca votaram mal...

E que, por isso, votarão cavaco se este se candidatar a prefeito ...

concluiria.


Que ideia mais estúpida! Do meu ponto de vista, os portugueses votaram mal muitas vezes ou quase sempre, votando nesses tipos e nas organizações desses tipos importantes e ricos que trouxeram o país até esta desgraça que eles mesmos cavaram e não se cansam de catalogar como desgraça.

Não presumo sobre a superioridade absoluta ou a beleza ou ... do meu ponto de vista. E aceito os resultados eleitorais rezando para que as escolhas pelo voto do povo sejam certas e melhores que as minhas. Tem sido tanto assim que eu quase posso dizer, por desacordo com o povo e esses maganos, que não me sinto culpado por tanta desgraça.

:-)

A estupidez não paga imposto, já dizia a minha mãe! Que espera a inspecção geral de finanças para investigar estes tipos? Não primando pela inteligência, para estes tipos, ir à televisão não é mais que um sinal exterior de riqueza.

eu sei que(...)


(...)
Eu sei que o mistério
é uma dentadura abandonada.
(...)



Mário Henrique Leiria
in Climas Ortopédicos

help


grita
e enquanto não tiveres a certeza
que eu te ouço
repete
a palavra que queres fixar na memória do mundo
por estes dias em que te perdeste ao perder tudo
que é o que podias lembrar
o que tinhas de teu
para além do nome

nova orleães

ontem fui a lisboa

Ontem fomos ao Aeroporto de Lisboa.
Fomos resgatar parte da família no seu regresso dos Estados Unidos da América. Por isso, prestei pouca atenção aos outros aspectos do dia. Se não tivesse ido a Lisboa, tinha ido até uma conferência nacional sobre as autárquicas (do bloco de esquerda). Como não fui, procurei ler no meu jornal de hoje alguma coisa que me dissesse o que se disse sobre a questão autárquica nessa conferência.

Mas, a acreditar no jornal, a conferência foi sobre as presidenciais. Quem assim nos fez até sermos todos tão parecidos? Até parecermos membros de um só e mesmo partido - o das oportunidades... E quem me dera que não o dos oportunismos! Que futuro nos reserva o passado?

Ontem, fui a Lisboa. Se tivesse ido ao Porto, tinha ido a Lisboa.

o verão vai embora


O cardo adula com penugem tenra

A papoila arroja de si o vestido
como uma grávida

A macela desfia
pelos botões

A chicória fecha-se
e encanece.



[Reiner Kunze (Luz Videira e Renato Correia)]

flor de laranjeira



Nada na minha vida verdadeira me liga às flores de laranjeira. A não ser lembrar-me que a minha juventude não gostava de as ver cair cedo demais das laranjeiras que haviam de dar as laranjas a roubar nas noites escuras da aldeia invernosa. E ouvia falar delas para os casamentos das fotografias.
Até que um dia vi uma fotografia em que tu, vestida de noiva, seguravas um ramo, a flor de laranjeira . Eu não sabia como podem ser lindas as flores de laranjeira. Desde então bebo flores de laranjeira perdidas na água fervente em que as mergulho. E espero sujar a lapela do meu melhor casaco com um pingo da flor de laranjeira do sonho (tal qual a da fotografia) em que a tiravas do teu ramo e me estendias a mão...

a pintura do amador




uma discussão acesa é candeia na noite dos amantes:
os corpos servem é para discutir e as mãos em labaredas
para sublinhar as palavras mais ardentes enquanto as bocas
desmaiam - disseste isto e aqui chegada apagaste-te em silêncio
e repouso, encolhida ali perto numa curva do meu sonho, ao luar.

as caras mais a cara do burro feliz