Onde o que parece é  

Concentro-me no meu papel. Preparo cuidadosamente uma aula sobre cálculo de limites. Sem papel, escrevo no ar um exemplo construído para abrir um debate com solução à vista. Sei que, amanhã, mesmo sem pensar nisso, cada estudante vai procurar, na sua arrumação de utensílios recentes, os que sabe usar. vai testar cada um deles até encontrar a chave que abre a porta do problema que dá para a solução. Embora se trate de um cálculo, o limite exige mais que uma operação vulgar, mobiliza conhecimentos que sempre andaram por aí e convergem para este novo cálculo de síntese.Calcular limites é lidar com o infinito, com o infinitamente grande e com o infinitamente pequeno e é, por isso, arranhar a linha do horizonte.

Olho para os estudantes a manejar com naturalidade, aparente negligência ou à vontade, ferramentas que eu reconheço como fim de linha de uma produção humana de milhares de anos. Olhar para eles, olhando para mim. E ver, sem ver, uma aula em toda a sua pequenez cercada por quatro paredes de dúvidas e em toda a infinita grandeza do espírito humano sem fronteiras.

Vivem-se momentos de puro espanto quando tomamos consciência da infinita potência destes infinitamente pequenos acontecimentos. E deixo então que me assalte uma arrogância irracional, um desprezo irracional pelas pequenas coisas, pelo que está fora desta deambulação espiritual de funâmbulo na corda da matemática humana, exclusivamente humana.

E quase esqueço os discursos que são para as ocasiões, para serem soletrados em cada um dos nadas que é preciso sublinhar para sublimar o vazio que aflige as maiorias, para mascarar de decência a falta de pudor.

Nesta paragem do tempo no infinito da sala de aula, nada nem ninguém me pode negar o momento da paz, da harmonia com um pequeno mundo de olhares humanos em harmonia completa e comprometida, mesmo que inconsciente, com este presente do mundo passado. E em harmonia com o futuro que vive da fé infinitamente grande nos homens e nas mulheres em busca, em mudança, em metamorfose.

Nada vale a pena se isto não valer a pena! Uma aula de limites, de infinitamente pequenos pormenores, pode ser o acontecimento mais importante de que vale a pena deixar testemunho, como prova de vida, numa semana como esta.


[o aveiro; 2/2/2006]

Senhores do seu nariz




São gémeos? Não sei. Só sei que usam o mesmo nariz.

41 assaltos



Um dia,
no Parlamento,
um professor de Finanças de duas Universidades
que ganha como primeiro ministro,
declarou,
a propósito de um aumento de salários dos professores,
que tinha vergonha de ser professor.

De todas as declarações do primeiro ministro
considero ser aquela
a mais séria e verdadeira.



Escrito ao tempo dos meus quarenta e um ou dois anos. Não sei que escrever agora em homenagem ao multireformado de banco de portugal, universidade, primeiro, etc e presidente. Nem isso interessa.

elegância da pequenez

Há crianças tão leves que ao tropeçar nas borboletas
ficam a pairar no ar e, por longos momentos, antes de cair
sentem que a realidade se imobiliza e sustém a respiração.

E há mulheres tão finas que passam entre os pingos de chuva.
Como juncos, abrem asas aos braços do vento e voam. Entristecem
ao perder de vista as fitas dos chapéus que pesam para o chão.

Pela Constituição, ... votar! Votar!

A tendência para o aumento das desigualdades entre ricos e pobres está a aumentar em todo o mundo. Portugal é de todos os países da comunidade europeia aquele em que são maiores as desigualdades de rendimentos entre os ricos e os pobres e não cessam de aumentar. Não é só o abismo entre ricos e pobres que cresce e nos diz que estamos a andar para trás relativamente à Europa em que nos integramos: temos a pior (a maior!) taxa de abandono escolar e o maior índice europeu de pobreza persistente. Cerca de dois milhões de portugueses vivem com menos de 350 euros por mês.

Estamos a chegar aos 500 mil desempregados. Há empresas a perder a face humana e a não olhar a meios para maximizar o lucro. Sem pingo de vergonha, empresas descaradas recebem subsídios do Estado em troca da promessa de criar empregos e, logo que cheiram melhores condições de exploração noutro lugar do mundo, abandonam a uma sorte madrasta os que acrescentaram riqueza à riqueza das empresas. Falências fraudulentas, faltas de pagamento das prestações devidas à segurança social, etc.

Quem não se sente mal?

A respeito destes problemas e da preservação do património ou dos serviços essenciais, os governos de Portugal têm vindo a abrandar as políticas sociais correctoras e a acelerar as privatizações e as medidas liberais, fazendo do Estado uma empresa medrosa de fretes ao grande capital financeiro, com o argumento de ser preciso criar condições favoráveis ao capital ?empreendedor?. E tudo isto é feito por governos do PS, do PSD e PP. E ao arrepio da Constituição da República Portuguesa.

De que Presidente precisa Portugal? Basta-nos ter como Presidente um homem sério, solidário e competente. Afinal, o que esperamos é pouco e é tudo: queremos um Presidente que defenda a Constituição da República, à luz da qual é eleito e a qual vai jurar defender. Olhamos para os candidatos e seus apoiantes e sabemos quais jurarão falso se chegarem a jurar defender a Constituição.

Cavaco é um daqueles que faz juras de amor á Constituição enquanto sonha apoiar todas as cirurgias plásticas que lhe mudem a face. Ele é um daqueles economistas que entende que as pessoas de hoje não existem e que o desemprego de hoje, os baixos salários ou a flexibilização dos horáríos são condições necessárias ao desenvolvimento a prometer empregos ao futuro na reparação das ruínas do presente.

O que é preciso é votar pela Constituição contra Cavaco! O que é preciso é votar Louçã pela Constituição, suas garantias e tudo o que de bom lá vive em palavras. Para nos sentirmos bem.

[o aveiro; 19/01/2006]


Nota: Este texto não foi publicado. Em sua substituição, a (direcção ou a) redacção de O AVEIRO publicou um texto de Daniel Oliveira (também do Bloco de Esquerda e que escreve para o Expresso), que não versa as presidenciais, mas a cultura e o seu ministério... Fico à espera. De quê?
Quem não se sente mal?

somos, fomos, somos, seremos