recebi uma carta pelo correio

"O homem finge em relação ao amor,
quando o que procura é ... sexo.
A mulher finge em relação ao sexo,
quando o que procura é ... amor !!"

(Enrique Rojas)

É? - respondo eu.

beijar a boca do dia

Caminhavas rente à madrugada. Entre os vinte e os trinta anos, bastava a tua sombra para te assustar. E uma folha de papel furtiva que transportasses era uma tonelada de medo a ser movimentada pela grama de coragem que voava à tua frente.

Caminhavas rente aos muros arrastando um pincel de sono e sonho, vermelho e amarelo, branco e preto. Escrevias cartas curtas sem saber quem as iria ler. Com a fadiga própria das noites longas, abrias os teus olhos de mocho mudo no beco e escrevias a carta necessária que mais valia ter ocupado rua onde passasse gente. Pensavas que era triste esconder a carta de amor no beco e pensavas que se fosses apanhado no beco não tinhas por onde fugir. Mas não deixavas de fazer esse gesto de amor, o mais irracional de todos.

E, mal rompia a manhã, lá te levantavas para o trabalho aos olhos dos vizinhos e dos colegas e encenavas a alegria de estar vivo. A alegria de estar vivo. Como hoje? Lembras-te da música das marchas que assobiavas nas manhãs sujas? Ainda hoje te perguntas: Se eras tão medroso como dizes que eras, porque assobiavas aqueles desafios?

Passaram tantos anos e a fadiga da idade reduz-te a passada de todos os dias. Nunca houve fadiga na tua liberdade.

Há uma irritação surda com todos os que se penduraram na boleia da liberdade (que não lhes custou a ganhar, embora já tivessem idade para fazer por isso), e dela fizeram carroça da fortuna, do poder e da glória mais vã. Passeiam-se em liberdade, fazendo gala da boçalidade e da imbecilidade mais atrevida contra a liberdade dos outros, dos que dela mais precisam. Porque sabem que só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, saúde, habitação... que era letra de canção e é ainda em grande parte... promessa por cumprir.

Quando a guerra acabou e a vida se tornou um rio de pura euforia, a alegria breve do amor fez-se eterna e murmuraste a terna promessa de que tudo quanto era bom podia ser possível. E, com liberdade, beijaste a boca dos dias.

Já avô e ainda podes mostrar a marca perene do beijo que guardaste do 25 de Abril de 1974. Que mais queres? Tudo o que era Abril e não era sonho. Tudo de tudo.

[o aveiro;27/04/2006]

fruta da época

Quando dou por mim a escrever, nunca imagino que tenha de seguir algum caderno de encargos feito por terceiros que têm as suas prioridades legítimas, as suas preferências legítimas, as suas esposas legítimas, etc. Também não acho que tenha de seguir à lupa a actualidade que o parece ser e parece fugir.

Para mim, podem ganhar força de actualidade, a constituírem encargo para palavras minhas, assuntos que a mais ninguém interessam. Nos tempos que correm, a actualidade não existe em rigor. Um jornal, um grupo económico ou editorial (nem sempre são coisas diferentes), um canal de televisão ou um partido pode criar uma actualidade que pode não ser senão a artificialidade conveniente a um qualquer propósito quase sempre inconfessável.

Nestes últimos dias, há vários assuntos que são falados ou soam a falados. Frequentemente nem assuntos dignos de nota são, até porque não são mais que palavras, anúncios de anúncios, podem não passar das palavras aos actos e ser passos em falso. Há quem me acuse de não dar aveirística atenção a tão magnos assuntos. Não dou para esses peditórios.

Jornalistas há que até nos perguntam sobre pormenores dos assuntos que os "pormenorizadores" encartados têm de inventar por os não conhecerem. Não gosto de escrever sobre cenários que um professor alinhava do mesmo modo que classifica ministros com notas entre 8 e 12, debita o tamanho das bolas do estoril aberto, folheia o livro das memórias da razão de um novelo da linha, notícia nacional de estrangulamento ali aos cabos ávila. Nada me diz a actualidade propagandística do governo autoritário e servil, ou a do governo local que anuncia num dia o anúncio do dia seguinte ou a de algum facto político desejado pelo protagonismo da oposição a coisa nenhuma.

Outros que falem dos novos pecados, da regionalização encapotada e da vantagem da cidade dos doutores e cantores (e de ditadores também, claro), do juízo perdido entre cidades ip5, da demissão do polícia que devia ser a do ministro, das lições a tirar da manga e da magna carta da educação do "tory blair", etc.

Eu escrevo a respeito do nada, comentando a actualidade do relatório de um tempo passado sem presente.

A actualidade pinga da dentada na polpa da fruta da época e obriga-me a uma vénia.

[o aveiro; 20/04/2006]

a sede

Pudesses transformar-te até seres
em meus lábios como a água é a saliva
e formando o rio que corre e morre
como eu hei-de morrer para tu viveres
afogada na minha sede mais viva.

pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui