devoto

faz o sinal da cruz

na areia da praia
como regos por onde a água brinque,

faz o sinal da cruz

na testa
e sente-o como festa do amante,


faz o sinal da cruz

coa naifa na tua mão esquerda
pra ser estigma chato com'á merda,

faz o sinal da cruz

no teu peito
para compensar a foice e o martelo tatuados nas costas,


faz o sinal da cruz

nas tuas calças
para seres uma viola no enterro,

faz o sinal da cruz

branca na t-shirt preta
e pequeníssima para que te paguem o salário de padre,

faz o sinal da cruz

no elástico das cuecas
para as poderes reclamar por um bom motivo.

faz o sinal da cruz

sobre a boca
para ninguém te ouvir dizer que estás vivo,

faz o sinal da cruz

na toalha do restaurante
enquanto esperas o bife,

faz o sinal da cruz

no céu azul
com as asas do desejo enquanto voas,


faz o sinal da cruz

em todos os lugares
do labirinto em que te queres perder


faz o sinal da cruz

para lembrar à tua mãe
que te sabes benzer,

faz o sinal da cruz

como parte de penitência
sobre o pecado que mais queres,

faz o sinal da cruz

porque te vais arrepender
amanhã do bem que te soube hoje,

(...)

faz o sinal da cruz
no boletim de voto.

galáxias

(...)











no meio das hidrângeas
a cobra
do sono.

(...)


l. pignatelli. galáxias.lisboa:1973

apeadeiro

sem que eu dê por isso
tu levantas-te da sombra
fingindo que és uma sombra
uma pálida sombra do que és

dizes que vais buscar-me
onde eu estiver

e eu fico aqui sem jeito
para ficar

partindo sem partir

S. D.


Não deixo que mais ninguém dispute estas lágrimas
Sei que morreste mas não reconheço a tua morte
Para mim não caíste nem foste para o hospital
Apenas flutuas a meio das escadas como num sonho

São apenas minhas estas silenciosas lágrimas
Que o meu inglês não traduz nem consegue traduzir
Fico com os discos e fotocopio os teus poemas
Para serem discutidos na aula e é tudo

É uma liturgia muito banal mas é minha
Não tenho outra maneira de te dizer adeus
Agora que enches de música outros territórios
Agora que alimentas uma grande saudade.



[J. Carmo Francisco; Iniciais. 1980]

o milagre de antón fernán

Antón Fernán vem a Portugal duas vezes por ano. O resto dos dias passa-os por cá, mas é como se cá não morasse. Nos celebrados momentos da visita de Antón Fernán ao nosso país, ouvimos uma frase de circunstância que ele prepara antecipadamente para ser comida como entrada. Embora possamos jurar que ouvimos as palavras de Antón Fernán, a verdade é que elas nunca foram ditas. Não por serem impronunciáveis ou indizíveis, mas por serem inaudíveis acima do silêncio sobre a visita de Antón Fernán, infinitamente mais sossegada que a visita de qualquer outro português que dê à costa.
Também é verdade que ninguém sabe muito sobre a nacionalidade de Antón e há mesmo alguma confusão a respeito da atribuição desta ou daquela nacionalidade a um cidadão da Península Ibérica. Se há quem diga que ele é catalão, outros dizem que descende de um vilão fenício dado à costa durante uma viagem marítima efectuada entre os dois pólos que, por culpa dos achatamentos polares, ficou menos celebrada que o extraordinário cruzeiro de Fernán de Magalhães, essa outra celebridade entre os ibero-mundanos.
Há mesmo quem insista que Antón é galego, talvez mesmo português. Quem tal pensa, não sabe explicar porquê. Muitos pormenores de todos os dias aumentam para o dobro a dificuldade em aceitá-lo como português. Numa das suas últimas visitas a Portugal, país de onde raramente saiu, hesitámos em propor-lhe que aceitasse a nacionalidade portuguesa honorária. A hesitação acabou por vencer e salvámo-nos da vergonha de o ver sujeito a responder sobre a linha sucessória dos vice-reis da Índia e dos cognomes atribuídos aos infantes da nossa sétima dinastia constitucional e à vergonha de não conhecer os nomes de família dos heróis que, no regresso das batalhas entre os teutões, muito justamente se batem pela isenção do imposto sobre os prémios, condecorações e lucros da venda de bandeiras.
Para cada trabalho de verificação patriótica, havia um juíz a preparar-se para o pior e para o melhor. Conta-se mesmo à boca pequena que havia quem estivesse a decorar os versos da septuagésima estrofe da Portuguesa para atirar à cara de Antón Fernán, quando ele, reconhecendo humildemente a falta dos saberes requeridos, se dissesse pronto a recitar a tabuada, uma estrofe d'Os Lusíadas ou d'Os 12 de Inglaterra.
E nem um pontapé? Inaceitável! - disseram-lhe. Na gramática? Posso tentar? - perguntou ele.

[o aveiro;13/07/2006]

desenharam, logo existe



os estudantes desenham e eu não me canso de lembrar como desenham bem.
© Escola José Estêvão

desenho, logo existo.


todos os dias

abro a caixa de correio
e dói tanto
não encontrar as tuas linhas

das mãos que ninguém sabe quanto
as quero minhas

mas está bem assim que já receio

encontrar o meu desejo
despedido com um bocejo

ou pior ainda... com um beijo

a pegada

14

O buraco destrói-se             é branco
ou sal

Nos joelhos da rua me aconchego
Esqueço-me e digo: a pele é um vestido
macio manhã cedo


Maria Alberta Menéres; A pegada do yeti

as portas da solidão

se desisto, as emoções saem comigo pela porta
que dá para a noite de um abismo... aberto para o lugar oco

com asas roubadas, as minhas!, tu voas para longe
dentro de mim, por mim adentro

sei que sou eu o que parti sem olhar-te no vidro:
a ausência ao espelho que já nem magoa por não haver volta a dar

um pouco mais de azul

1. Temos o direito de comentar todas as decisões e comportamentos das figuras públicas, mais ainda quando as suas acções influenciam directamente a vida colectiva. Não achei descabidos os comentários sobre actos de Freitas do Amaral enquanto Ministro dos Negócios Estrangeiros. Nem achei desproporcionadas as reprovações feitas em alguns momentos e os pedidos de remodelação ministerial a partir de algumas declarações do Ministro ou deste ou daquele acto.

Mas não posso concordar com a exploração que foi feita sobre a figura de Freitas do Amaral quando foi consumada a sua substituição objectivamente por razões de saúde. Acrescentar desnecessariamente cansaços políticos ao cansaço físico ao momento da exoneração, para além de rumores, é baixa política a roçar a baixa vingança sobre a diferença de opinião. Temos de reconhecer que, a partir do momento em que é clara a doença e se consuma a substituição, as fotografias da debilidade e os comentários oportunistas servem para diminuir os jornais que aceitam brincar sobre a glória dos vencidos... pela doença. Para mostrar força e estabilidade do governo e apesar da doença de Freitas do Amaral, Sócrates insistiu em mantê-lo como Ministro? Se isso tiver acontecido, Sócrates merece as mais duras críticas, como merecem as mais duras críticas todos aqueles que insistem em aproveitar estes acontecimentos para vender papel e alma.


2. Descalcei os sapatos do inverno para olhar e escutar o vaivém das ondas uma a uma, uma depois de outra depois de outra. O verão aparece-me como uma borda que separa a luz da sombra, o calor do frio, a areia da água,... Muitas vezes dou por mim a pensar que o verão me aparece de noite. Imagino-me a descalçar os sapatos do inverno numa noite escura e estrelada, Ainda sinto por dentro dos pés a água gelada, mas sinto que passei para o meu verão. Nada disto me acontece. Nada disto me acontece, mas falo disto como se pudesse ter acontecido.

Posso fazer a passagem de uma estação para outra em S. Jacinto, onde a bandeira azul se agita. Damos a cara à brisa salgada e, à queda da estrela cadente, acrescentamos um desejo à boa sorte que a bandeira azul é. Que a bandeira azul não apague as estrelas que precisam da escuridão para se acenderem lá no alto. Se perdermos a visão dos luzeiros no céu, o que nos resta?

[o aveiro; 6/7/2006]

as caras mais a cara do burro feliz