pela casa

na multidão que habita a cidade não podes esconder-te:

cada par de olhos te vê como se te conhecesse desde criança
e sentes que te seguem na tua deambulação sem esperança:

sabes bem que mão procuras e também sabes perder-te

o quadro

Praça do peixe

Nos dias que correm, para serem elegantes e poderosos, os homens mostram-se a correr pelas ruas e praças. Aproveitando a frescura da manhã ou da tardinha, um homem poderoso e elegante deve tomar a dianteira de uma fila de homens seguros treinados em ordem unida e em limpeza de bermas do trilho. Há fotógrafos que correm, em rápida marcha atrás, tanto como os homens poderosos e elegantes, para fotografar o andar saudavelmente enérgico dos homens elegantes estampado nas caras sorridentes que trazem sempre afiveladas. Os fotógrafos que tiram estas fotografias são admitidos nos trilhos e chegam mesmo a aparecer como matilha.

Os homens poderosos e elegantes são optimistas, nunca esquecem o sorriso, o brilho no olhar e a palavra fácil sobre uma grande cimeira, razão directa da ciumeira oposicionista e invejosa. 

Podem surgir do nada os homens elegantes e poderosos, podem ser feitos de nada, podem ter sido feitos para nada como se fosse para serem tudo que é o nada do outro lado. O maior encanto dos homens elegantes e poderosos reside no milagre da sua criação por uma revista de recados, modas e bordados. A essência “chic” dos homens elegantes transparece tanto na passada elástica sobre passadeiras vermelhas como na forma do tornozelo que se vê nas fotografias das tão significativamente importantes saídas dos automóveis negros. Há mesmo quem diga que neste mundo atapetado e apatetado importa mais a riqueza do pormenor que o pormenor da riqueza e que um homem poderoso pode ser elegante na medida da marca do sapato ou do verniz. 

Em momentos de grande pompa, o mais importante para os homens elegantes é não mostrar uma única estaladela no verniz e dar para a fotografia a ruga de simpatia, quase humano sinal de compaixão por quem precisa de ver a fotografia para acreditar na benção da sua existência. 

As pompas civis repetem-se: assembleias de accionistas, cimeiras, estreias de teatro superbemestar ou exposição de rica colecção em instituições subsidiadas pelo estado, velórios, baptizados e casamentos de estadão.  O cerimonial com artistas poderosos e elegantes não é subsidiado, porque é o estado a representar(-se). Até um mosteiro pode virar camarim. Não falta arte para representar, nem ponto para a asneira mais artística, nem fresco papel moeda.

Quem lhes dá corda aos sapatos? 

[o aveiro; 5/07/2007]

a leitura que nós somos

Se for verdade que nós escrevemos o que somos, é também verdade que nós somos o que lemos e diferentes seríamos se tivessem sido outros livros os que nos conduziram até aqui. Quanto mais leio, mais me sinto desmentido e, por isso, mais necessidade tenho de mentir a mim próprio para que o meu mundo não entre em derrocada.

Há quem diga que nós olhámos a religião como ópio do povo e a religião é afinal baseada na crença da imperfeição do homem terreno e que isso sim é a humanidade que anseia pela perfeição noutra vida que não nesta. E que procurar na vida terrena a perfeição humana transformou-se numa nova religião, ópio dos intelectuais que não se habituaram ao ópio do povo.

Quem assim nos olha, está sentado no penhasco mais alto e mais aguçado enquanto lê um livro de viagens escrito por um cavalheiro, e, sem acreditar em coisa alguma, deixam à turba a esperança na salvação eterna e aos intelectuais a degradação no culto do ópio e da perfeição humana em vida.

pobre e pedinte

Não me penteio e, por isso, um espelho anda atrás de mim pela casa. Não sou capaz de o partir porque o barulho da sua choradeira acordava o prédio inteiro. De vez em quando vai à minha frente em marcha atrás com um pente na mão. O desgraçado do espelho é cego, mas eu não dou esmolas ao primeiro espelho que me aparece.