é tarde

da boca para fora a palavra
coça no lugar da ferida
como uma demão de álcool
pinta a parede em carne viva

e um nó na garganta fecha o colar precioso
esse fio de cólera que desce do pescoço
até se perder entre os seios

como uma dor sem mãos.

Outros estercos?

Alguns dias por semana, sábados e domingos de Agosto, o homem e a mulher têm de dar comida ao porco. O porco enorme exige algumas refeições de confecção rápida. Uma lavagem especial de fim de semana para o porco da casa? Abóbora cortada sem grande cuidado para um balde sujo com restos de vegetais da cozinha humana, uma medida de farelo, uma couve e água e... já chega! A "suite" porcina consta de duas acomodações. Ao ar livre, sob um céu de parreira, um quadrado amplo para desentorpecer os pernis durante o dia. E um coberto murado com cama de palha fofa para as noites do porco, aconchegadas e calmas. O curral está integrado numa instalação onde há ainda espaço para guardar palha e utensílios e onde brincam galo com galinhas e adoecem pintaínhos.

De manhã, mal fica preparada a lavagem, o homem do serviço de quartos entra no curral. Pelo lado de fora, carregada de batatas, a mulher aproxima-se do recreio do porco, como se fosse preparada para uma pateada a um espectáculo. No cercado hoteleiro, o homem poisa o balde perto da porta do quarto do porco e, por um estreito corredor, entra no recreio. O homem vai abrir a porta do quarto de dormir para a varanda. O porco não tarda a aparecer e, grunhindo descumprimentos e impaciências, agita-se numa passada rápida. O homem sai do recreio coberto e, já no extremo do corredor, pega o balde. A mulher chama porco! a quem o merece e atira algumas batatas em forma de prémio, protesto ou projéctil à passagem rebolada do porco. A mulher chama o porco para o recreio, enquanto o homem despeja o balde da lavagem na pia ao lado da cama. Ainda o homem não saiu e já o porco chafurda a abóbora fresca, com total desprezo pela pateada de batatas. Modelos! - resmunga a mulher.

Cumprido o serviço do porco, o homem olha para as galinhas de que se fala pouco. Uma das galinhas parece manca. Onde estava um esporão e um dedo com garra aparecem duas mal-formações perturbadoras. O homem tenta agarrar a galinha e acaba com ela ao colo. Hesita, antes de tentar retirar o que impede a galinha de andar. Aquelas massas muito duras parecem parecem fazer parte das patas da galinha. Com força puxa e até parece que a pata se vai quebrar. O operador do milagre acaba com duas pequenas bolas de esterco muito secas nas mãos e uma ágil galinha a esvoaçar e a correr... sem lhe agradecer a cura.

Aconteceu mais alguma coisa?

[o aveiro; 30/08/2007]

61

o funil


ninguém como eu para coar a luz

o caminho


quem nos guia, guia a estrada
como quem desbrava, como quem lavra,
como quem procura o fim da linha:
um instante de descanso.

a conta do gás


ouvir o tempo como um grave escoar-se na ampulheta movediça:
de cima para baixo o vórtice de um quarto de hora de areia fina
na calha a cair como se houvesse vida por viver por ali em repouso:

ou respirar na água salgada é exercitar as guelras cardíacas
e é para salvar um moribundo que o turbilhão da água marinha
bate os músculos contra a bigorna até fazer brilhar uma lâmina?

uma lâmina que atrai a limalha desfeita em ar metálico
e trespassa o corpo de luz onde se perde e à dúvida:

ou, é como um turista que o pó de ferro viaja
até ser a ferrugem do pulmão do ferreiro?

armado de um garfo

dá-me duas boas razões para eu olhar por ti
abaixo ao velho pai bate o filho a porta do lar
de dia todos os gajos são pardos gaguejava
de dor que o garfo na falha de dente espetava


[
ninguém falava já naquela família diziam uns
para os outros isso não era novidade mesmo
há muito tempo que comiam sempre uma sopa
de legumes concentrados mudos e calados ouviam

o relato da história da família era um relato
de uma etapa da volta a portugal em que o tio
se tinha estreado na corrida de honra e despedido
numa vergonha que a urina da família desmerecia

tudo começava e acabava com a sopa e o relato
gravado durava tanto como a sopa pelas colheres
permaneciam para ali sentadas todas as mulheres
em silêncio nem rezavam nem deixavam rezar
]



dá-me duas boas razões para eu olhar por ti
e o passo em frente do pai sozinho esticava o dedo
o degrau avisava a campaínha e esta ainda a medo
desfazia-se no seu trimtrimtrimtrimtrimtrimtrimtri