s. martinho de mouros

De vez em quando saímos da casca e vamos para um lugar tão distante a que possamos chamar remoto. Quando nos ataca o desejo de sair da casca, ficamos prontos para ir até onde está o exemplo que queremos inaugurar. E se lá chegamos, ficamos tão excitados que nem resistimos a dar uns murros no púlpito de onde pregamos ao mundo inteiro o sermão da excelência do exemplo inaugural. O exemplo inaugural serve sempre para inaugurar uma nova era - a era das coisas como devem elas ser para todo o sempre e enquanto nos lembrarmos do nosso actual ponto de vista.
Este ano saímos nas vésperas da abertura do ano escolar e fomos inaugurar a nova era num lugar não muito longe do lugar onde um presidente sardento tinha presidido a uma desinauguração da era do excessivo abandono do interior. Inauguramos o exemplo inaugural mostrando-o a todos quantos se deixem fascinar pelo que os seus olhos vêem.
Vizinhos felizes do exemplo inaugural, para todos nós, as distâncias são coisa pouca e poucas horas de vida serão gastas para chegarmos à altura do exemplo inaugural. Chegamos a pensar em organizar excursões de curta duração e visitas de estudo para admirar o exemplo inaugural replicável como um marco que assinala onde começa a nova era. Outros de nós preferem esperar um ou dois anos até que numa outra saída da casca nos dê para desinaugurar o exemplo que já era.
Um centro escolar moderno sempre é em qualquer lugar do nosso mundo um bom propósito e um bom tema de conversa. Mas sabemos que é um despropósito toda conversa fiada sobre o que seja o saber, a cultura, a educação e o ensino - humano e frágil lugar de espírito - como coisa intrusa que possa ser criação de uma forma de organizar o espaço habitável. Fora da casca, ímpossível é travar a língua.
Parecia uma nova era anunciada por figurantes numa passarela inerte? Passemos a participantes de uma nova era de ocupação dos nossos mais belos lugares e vivamos uma disciplina do espírito que nos poupe o sermão do exemplo inaugural que já era antes de o ser.


{o aveiro; 13/09/2007]

esquerda ou direita?

o que vejo quando



quando fumo o charuto da herança,
que espero eu ver da varanda?


só sei que uma nuvem de fumo
fica a pairar em volta e de mim
me esconde
e de mim esconde a vertigem
e a nesga de abismo.

o mês depois

Um mês depois voltamos aos mesmos lugares. Refrescamos alguns lugares que sabemos de memória. Ainda que o tivessemos desejado, os lugares físicos da memória não desapareceram e nós voltamos a eles tal como eles eram antes do abandono a que os votámos. Eles estão aí com mais uma pequena ruga ou estaladela a acrescentar dados seus à nossa memória deles.
Umas vezes, partimos a desejar que tudo mude. Outras, rezamos para que tudo esteja como dantes ao voltar. Mesmo quando as notícias nos deram conta de muitas mudanças. Nunca desejamos que venha um furacão que tudo arrase e, se vier, ficamos prontos para a reconstrução como se tudo tivesse de voltar a ser o mesmo, mesmo que seja para ser renovado logo que possível. As reconstruções raramente se fazem sem que das cinzas se erga uma imagem antiga que persiste no novo.
Quando nos refugiamos no outro lugar, damos por nós a procurar as notícias sobre o que quisemos abandonar. Fingindo não querer saber, vamos colhendo notas breves, que nos permitem chegar inteiros ao nosso lugar. Sem esperança, mas sossegados, porque sabemos que tudo continua na mesma, o que quer dizer reconhecível. Não fico contente ao ler uma notícia de uma grande patifaria mesmo quando a esperaria de quem a faz. Por ser uma grande patifaria que é sempre contra alguém e contra todos nós. Mas dou por mim a pensar que me sossega saber dos escândalos, das pequenas canalhices, das patifarias negocistas, dos argumentos estúpidos, do ridículo, ... E sinto que posso voltar ao meu lugar imperfeito. De certo modo, um lugar imperfeito é onde há sempre lugar para pensar na perfeição ainda que ela não seja deste mundo.
Voltar a casa é voltar a um país e a uma cidade que viveu os seus dias carregando pequenas grandezas, tolices grandes e pequenas e a miséria do costume. Para lidar com isso, lutando contra a miséria e insistindo na denúncia do mal para que este não se sinta em casa em lugar algum. Para que não se repitam os erros. Afinal nos golpes deste Agosto político e partidário não houve novidades de tal monta que envergonhem o passado do mal.
Voltar a casa, no meu caso, é também voltar à escola que tenta ser a mesma quando tem de ser outra, quando a velhice a obriga a retocar-se até deixar de ser a escola de antigamente. E é voltar às ruas de Aveiro, como se fossem os corredores da imperfeita casa que é a nossa.

[o aveiro; 06/09/2007]

somos, fomos, somos, seremos