dai-me

às portas de esgueira

As listas ordenadas

As perguntas não se fizeram esperar. Logo que o Ministério da Educação tornou acessíveis os dados dos exames deste ano, começaram as perguntas sobre as listas ordenadas das escolas. Pela primeira vez, o Ministério forneceu os dados para a comunicação social ao mesmo tempo que para o público em geral. E este facto acrescentou ainda mais controvérsia à controvérsia de sempre em torno dos resultados dos exames nacionais. Redacções houve que imediatamente publicaram as suas listas, enquanto outros reclamaram tempo para tratar os dados e publicar análises mais trabalhadas.

Pudemos passar os olhos por duas das listas publicadas. À procura de sinais, lemos os critérios e sigo os meus dedos linha a linha até encontrar uma ou outra escola. Guardo de memória algumas escolas que possam ser comparadas, por exemplo, as da mesma cidade. Os quadros de professores e as culturas profissionais são muito semelhantes, embora possam variar as instalações e as pessoas - professores e estudantes.

O exemplo de qualquer escola dá para olhar com olhos de ver. A Escola José Estêvão ocupa a posição 95 na lista publicada no DN/JN, e, na lista da SIC, ocupa a posição 39. Tudo depende das disciplinas cujas notas contribuem para a ordenação. E é claro que tudo depende do número de alunos que realizam os exames em cada disciplina, o que é o mesmo que dizer que tudo depende do número de alunos que a escola leva a exame. O que faz toda a diferença: uma escola que leve a exame só os melhores alunos ocupará um melhor lugar na lista ordenada. Porque ninguém pergunta quantos alunos se excluem da lista ao longo do ciclo de ensino. Perguntam-me muitas vezes: Então as escolas deixam ir a exame alunos que não estão preparados para concluir o ciclo de estudos? E a resposta não pode ser sim ou não. Eles podem estar em condições de concluir um ciclo de estudos sem que isso signifique prestarem obrigatoriamente boas provas de exame. Eles podem estar preparados para uma boa prova de exame sem que estejam preparados para concluir um ciclo de estudos.

Parece complicado? Não é. Para as escolas, pais e professores que se ocuparam do crescimento em graça e sabedoria das crianças e jovens nada disto é estranho. Mas quem mais quer saber das pessoas quando as pode substituir pelos seus números? Estes números, agora publicados, são muito relevantes e ajudam muito quem precisa de compreender para actuar. Mas não são tudo. E isso é tudo.

[o aveiro; 1/11/2007]

a luz

porta de entrada

arte e matemática

estreita a passagem

estreita a passagem entre penhascos um rio

deixa que me lembre em contraluz os teus dedos
apontando mais adiante uma agitação um desvario
o silêncio das ausências que há em todos os segredos

deixa que me lembre de algum sermão que seja rouco
na tua voz ditado para a nave nua onde ninguém pára a ouvir
como não se ouve um murmúrio que ainda está para vir
ou o sussurro de quem perdeu os dons e ficou mudo e louco

por um ai tu te esgueiras para não seres mais que lenda
aquela que até da vida se escapa por um fio
uma mão não mais que uma mão de través uma fenda

estreita a passagem entre penhascos um rio

um dia depois e...

Um dia depois e não somos quem éramos
que importa termos sido tão intensamente

se ontem ou hoje ou amanhã o nosso lugar
é uma onda de vento que quase não se sente.

Se fizemos do nosso corpo uma embalagem
e nela cabem as fotografias que fomos rasgando

o corpo pode ficar ou levar-se a si em viagem
que quem não souber onde somos saberá quando.

uma noite,...

Uma noite, ao dobrar uma esquina do corredor da casa, vi o gato de botas na mão a sair do quarto da minha namorada. Por momentos, ele olhou-me e pareceu-me que se ria enquanto me desafiava, levando a mão direita a uma espécie de florete que lhe pendia do cinto largo. Não pensei duas vezes e foi o meu pontapé certeiro que o levou dali para fora pela janela aberta. Muito depois, já eu me deitara quando dei por mim a descansar a consciência com o que se ouve sobre as sete vidas dos gatos.
Pela manhã acordei de um sono pesado com um grito horrível.
Antes de me levantar já tinha percebido que o rabo de fora da minha namorada já tinha gasto as sete vidas antes de voar pela janela da noite passada.

mais os mesmos

Todos sabemos que a maior parte dos programas de ensino são nacionais. Todos sabemos que os professores têm todos a mesma formação superior, mais coisa menos coisa. Todos sabemos que as escolas fazem planificações do trabalho lectivo de modos muito semelhantes. Todos sabemos que os professores ensinam as mesmas coisas e que os alunos que aprendem alguma coisa aprendem a mesma coisa. Todos sabemos que os jovens portugueses são, na generalidade, muito parecidos, com acesso a produtos culturais massificados e transmitidos pelas centrais mundiais que uniformizam gostos, atitudes e valores. Todos sabemos que as formas de vida da generalidade das famílias são parecidas no que toca ao tempo disponível para os filhos. Todos sabemos quais são os hábitos gerais de leitura juvenil e sabemos os números a esse respeito recentemente publicados. Todos sabemos que as notícias garantem que o país está a equilibrar as finanças públicas e que o défice está controlado. Todos sabemos que não sabemos o que isso quer dizer a não ser que os nossos consumos se reduzem por medo e por pouco tempo. Todos sabemos que a taxa do desemprego não parou de subir, mesmo quando nos dizem que desceu. Todos sabemos que não sabemos como é que as famílias tocadas pelo desemprego de longa duração sobrevivem e todos sabemos qual é o cheiro da pobreza. Todos sabemos que os jovens dormem pouco e chegam estafados à escola diurna para confirmarem que não rendem. E todos sabemos que quem frequenta a escola nocturna lá chega estafado pelo trabalho que não rende e é natural que a escola não renda. Todos sabemos que, no nosso mundo, para a escola vai quem não trabalha e para o trabalho vai quem não estuda. Todos sabemos que fazemos parte da europa e que dela pinga a ajuda que nós precisamos mesmo quando não sabemos de que ajuda precisamos. Todos sabemos, porque nos disseram, que nós precisamos de estar actualizados e que a nossa capacidade de competir vem de termos tecnologia, mesmo que a não saibamos usar de forma inteligente e a favor da nossa humanidade. Todos sabemos que é muito importante sermos presidência europeia e termos conseguido o tratado porreiro mesmo sem sabermos ler nem escrever o que quer que seja sobre o tratado. Todos sabemos que não sabemos o que fazer de nós mesmos para não sermos mais os mesmos e sermos... os outros portugueses que prometemos aprender a ser.

[o aveiro, 25/10/2007]

as caras mais a cara do burro feliz