à maneira de almada

Nos Jerónimos, há nove dias, um repórter de televisão perguntava a um operário do cenário o que pensava ele sobre qualquer coisa. Ele respondia que, se não fosse para a televisão, podia ouvir-se o que ele pensava. Nada pode ser mais claro sobre o acontecimento histórico do dia seguinte em que os gestores da europa de risco assinaram um papel, sob um fundo construído para o momento de um espectáculo. Pouca gente já conhece o enredo da telenovela, da qual vai ser transmitido a bicha das assinaturas, o cenário. Vagamente nos disseram que se tratava da carta dos direitos dos cidadãos europeus, omitindo que cidadãos europeus da primeira linha tinham votado contra a primeira coisa alterada e piorada para que políticos de hoje dispensem as consultas populares que ontem exigiram ou prometeram caso fossem eleitos.

Os políticos do poder pensam sossegar-nos quando dizem que esta carta é mais pobre que a nossa constituição. Mas se a carta de direitos dos europeus é mais pobre em direitos que a nossa constituição, será que estão a pensar em alguns cortes nos nossos direitos? Porque se esforçam eles para não falar do conteúdo da coisa?

Destes feitos históricos, sobram os cenários, os fatos, os vestidos, as canetas, a forma como se senta, a cor das meias, os olhares, os bocejos, os passos, o instantâneo de um pé de orelha, a luz, o azul, as estrelas, a canção do mar, ... O feito histórico está na fotografia frente ao cenário, é o discurso em louvor do momento e das assinaturas do acordo: esse oculto.

Pelas televisões, os doentes acamados seguiram a história a ser feita, fato a fato, por senhores dos passos e assinaturas treinadas para estas ocasiões de prata. Dos transistores, os ouvintes que se distraíram pensam que ouviram uma missinha mal cantada, sussurrada por um crente agnóstico, a partir do Mosteiro dos Jerónimos.

As pessoas comuns, que passam sem parar, lembram-se de deputados europeus mal educados a quem o Sócrates convenceu com imensa piada que defende isto em vez daquilo e o Sócrates que nós conhecemos defende o que é melhor para os portugueses que é o que, em cada momento, é melhor para que os rios continuem a nascer no mar. E lembram-se do operário que, sem dizer, disse o que toda a gente pensa.


[o aveiro; 20/12/2007]

desenho, logo existe

desenhei, logo existe


voltaram as reuniões, em todo o seu esplendor.

publicidade paga

Neste segundo semestre de 2007, Portugal tornou-se o país de todas as cimeiras. Não só por ter assumido a presidência da União Europeia.

Logo por sorte ou por azar a cimeira ibero-americana deu pano para mangas. Com o “Porque não te calas?” em castelhano real, os nossos Presidente e Primeiro ganharam altura e tempo aos nossos olhos presos até prejudicarem a atenção aos problemas com emigrantes portugueses na Venezuela.

Já no âmbito da presidência europeia, foram tantas as conferências e cimeiras que chegamos a pensar que, depois do tratado de Roma, são de Lisboa todos os grandes documentos de tal modo se colam virtudes e importância aos papéis europeus começados e acabados em Lisboa.

Alguém se lembra das promessas europeias da Lisboa de Guterres? Ninguém se lembra dos compromissos de Lisboa tão saudados e adiados. Portugal associa o nome da sua capital até a compromissos porreiros sobre futuras assinaturas comprometedoras, emendas, corrigendas, dito por não dito.

Outros países europeus que receberam grandes conferências para convenções e acordos associaram tais eventos a pequenas cidades mais ou menos desconhecidas. Tratados e acordos verdadeiramente importantes (para o bem e para o mal) são conhecidos por estranhos nomes.

A cimeira Europa-África trouxe a Portugal os chefes dos estados africanos, parte deles déspotas terríveis, alguns recauchutados ainda com tripas no lugar do coração, reconhecidos criminosos com passaporte diplomático, etc. Neste grande mercado de influências, os direitos humanos ficaram guardados à vista dentro de uma mala diplomática.

Jornais portugueses publicaram anúncios de página inteira em que um ditador promove as suas ideias contrárias a convenções internacionais e às instituições de justiça e direito internacional que os governos europeus assinaram e promovem. Esta campanha publicitária paralela associada à cobertura da cimeira - o teor das notícias sem teor combinado com a ostentação simbólica de movimentações em circuito fechado - leva-nos a pensar que, afinal, talvez tudo, mesmo tudo, não passe de publicidade paga.

[o aveiro; 13/12/2007]

Árvore de Natal


Numa escola, as árvores de natal podem ser bem estranhas. Podem.

resto de vida

A viúva apressava-se a enterrar o defunto
marido que já desenterrado o amante
a esperava à mesa com o vinho e o presunto

restos da vida de antes para outra mais adiante.


Já o viúvo morto tomando alento voava céu alto
em avião fretado ou asas de ir ao outro mundo
na pressa de respirar a nuvem sem parede nem fundo

esquece a viúva a magra pensão o sobressalto.

a última palavra

No sábado passado, em família, fomos ao(s) concerto(s) de encerramento de “Sons em Trânsito”. No regresso, o músico da família comentava a natureza da adesão que cada um dos concertos reclamara e obtivera. Como se o público tivesse estado dividido em duas partes, uma para a adesão ao primeiro concerto, outra para o segundo. O monólogo separava as propostas estéticas em categorias tais que só públicos diferentes poderiam aderir realmente a uma e a outra. O monólogo argumentava especialidades a separar as sensibilidades e exigia alguma razão científica e literária como suporte de adesão. Fui pensando no que teria sido a adesão a uma e a outra das propostas ou aos seus vários andamentos, já que ambas oscilaram entre registos distintos, da adesão imediata ao corte por via de referências inacessíveis.
A discussão sobre a adesão a propostas estéticas é a discussão sobre a adesão a qualquer proposta. Há níveis de adesão distintos uns dos outros; a adesão de uns pode ser mais fundada em critérios estéticos ou científicos, podendo chamar para si uma razão para a emoção que explica a emoção. O chamamento de pareceres técnicos e científicos para apoiar uma determinada decisão serve mesmo, muitas vezes, como almofada de consciência em decisões onde prevalecem imperativos morais. Parece estranho? Muitas das decisões que pisam o risco do sustentável em termos da humanidade e da terra onde se reuniram as condições para a sua criação, chamam uma particular razão científica em seu apoio, sempre que a razão científica geral desaconselha. A razão científica particular releva sempre do interesse particular e da ordem do imoral: “se não for eu a fazer, outro fará pior!”
A discussão sobre o aeroporto para Lisboa é exemplar a este respeito. O conjunto, ainda numerável, de pareceres científicos que apoiam decisões diferentes para um mesmo problema são da ordem da machadada. Já assim tinha acontecido com a localização das unidades de incineração e, por isso, Sócrates pode reclamar uma vitória a dois tempos. A ciência apoia mas não toma decisões, os políticos decisores somam razões para colher adesões à sua decisão.
A forma como aderimos e apoiamos ou rejeitamos pode afinal ser muito variada. Mas será que há adesões (ou rejeições) melhores que outras? E haverá um“a última palavra”?

Concertos desconcertantes!


[o aveiro; 6/12/2007]

somos, fomos, somos, seremos