a conta dos nervos


a joaninha decidiu não partir daqui. eu bem reclamo a liberdade dela e reclamo que parta para que os outros acreditem na liberdade de que falo. só que a joaninha decidiu gozar a sua liberdade mesmo por aqui e não há quem a convença a partir. muito menos eu.
durante alguns dias senti-me mal com a situação e andei envergonhado a esconder-me das pessoas que não acreditaram nem acreditam que eu abri a jaula da joaninha. é verdade que eu tinha tonado pública a minha obsessão pela joaninha e dizia aos sete ventos que a joaninha estava comigo por gostar de mim. tinham-me ofendido todos quantos pensavam que a joaninha não se ia embora por ter pena de mim ou por a ter ameaçado de alguma maldade caso ela partisse e me deixasse só.
eu não me cansava de lhe perguntar se ela algum dia tinha pensado em abrir asas e voar e de lhe dizer que nada faria para a impedir quando desejasse partir embora ficasse de coração partido.
acreditem ou não, para acabar com os mexericos a respeito da minha obsessão doentia, acabei por ser eu a pedir-lhe que partisse, que voasse para bem longe de mim.
já não falo com ela, mas ela porta-se com sempre só que eu agora dou pelos pequenos factos a que não dava importância: ela também não fala comigo, mas há quem diga que sempre foi assim. e que nem podia ser de outra forma.

Ouvir o olhar

A cada minuto, o escaravelho abria um pouco as asas para voltar a fechá-las e a fechar-se em copas. Eu tinha os olhos postos em cada um dos seus movimentos e se é verdade que eu não queria complicar-lhe a vida, também é verdade que estava disposto a lançar-lhe uma rede por cima se ele decidisse voar dali. Eu precisava dele ali. Talvez ele nem soubesse que eu estava ali para o observar. Não, não estava a usar qualquer lupa. Mantinha os olhos fixos no escaravelho e nada mais.

Quando abria as asas, deixava ver uma combinação de transparências. Talvez asas, talvez novos pares de asas, por sob aquelas asas de carapaça. Talvez abrisse as asas para verificar a humidade e a temperatura do ar ou para condicionar a temperatura do seu próprio corpo. Não sei. Aliás, eu sei pouco de escaravelhos. Para ser sério, eu sei pouco de quase tudo.

Desde há muito tempo que me dedico a observar os bichos. Incapaz de compreender os seus comportamentos, as suas manias e ainda menos as relações entre eles. Não foi sempre assim. Mas, à medida que me concentrava na observação dos hábitos dos bichos percebia como era impossível entender o que se passava nas cabeças deles. Houve um tempo em que me dediquei a estudar com grande afinco as comunicações entre os bichos mais barulhentos, mas nem percebia o interesse e o alcance da maioria das expressões faciais, ruidosas ou palavrosas de alguns bichos mais activos e ainda menos percebia as reacções (palavrosas ou não) de resposta dos bichos interpelados pelos primeiros. E fui desistindo de tentar compreender qualquer comunicação entre os bichos para além da dança, do movimento, da animação das asas e das hastes. Dei por mim a ser um observador fascinado pelas pequenas agitações na vida dos outros bichos.

Hoje preciso do escaravelho. Como observador interessado preciso do escaravelho; a pequena agitação das suas asas e hastes determina os movimentos dos meus olhos, únicos sinais de vida no meu corpo, rígido e tenso em tocaia.

Sem tirar os olhos do meu escaravelho, vejo chegar uma multidão e os olhos não dão para acompanhar tanta agitação. O meu escaravelho agita um pouco as asas e as hastes, mostrando as suas combinações de transparências, apaziguado pela compreensão da multidão.

Eu só observo. Os meus olhos precisam de uma lupa para ver ao longe. Sem a televisão não posso ver o que se passa no Funchal. Dou por mim fascinado a ver as pequenas agitações do Funchal. Antes ouvi com cuidado Alberto João Jardim, a sua alta voz. Ao observador não amofina não compreender.


[o aveiro; 17/4/2008]

os dias miudinhos

Gosto de chuva miudinha nos dias em que me viro para o lado da tristeza simples. Olho para o que acontece e se o que vejo acontecer ou me vem à memória não dá nem para grandes alegrias nem para grandes tristezas dá-me uma vontade de chuva miudinha que me feche num asilo de melancolia. Deixo-me abandonado. E deixo que os olhos vão lá para fora jogar às escondidas com a chuva triste e miudinha. A água anda por aí no ar como se ar fosse. E é como se me fechasse numa bolha onde só pudesse respirar a humidade, uma asfixia lenta.

Vagamente chegam-me farrapos de um debate sobre pontes e cidades gémeas, região multipolar, rodovia, ferrovia, aerovia, etc. Vêm de ontem os farrapos. Surgem-me as palavras embrulhadas em neblina, como fantasmas futuros rompem a chuva miudinha.

Leio que o Tribunal Constitucional ditou para o passado do concurso dos professores titulares um defeito, uma inconstitucionalidade, uma violação da igualdade no direito de acesso. Mais uma declaração de defeito, entre tantas outras. São os erros que se repetem mais vezes? Ou há mais gente a ver os erros de conveniência? Será que há erros plantados para serem vistos na floresta dos pequenos enganos e grandes engulhos?

E leio, seguindo um julgamento de coisa antiga, a humilhação de uma praxe em que uma jovem pode ser barrada com bosta e pode ter a cabeça mergulhada em penicos numa quinta de propriedade da escola agrária, afastada do centro da cidade.... E basta ler o riso das bestas e a descrição das coisas em que pensam para percebermos que alguma coisa funciona mal. Pior ainda se nos lembrarmos que ainda há quem ache normal soltar a besta desde que ela more nas universidades.

E passamos dos actos às palavras, dos actos aos atos, dos factos aos fatos, das palavras mais pesadas que os actos, das palavras sopesadas pelos que discutem acordos e desacordos orográfica e ortograficamente falando de coisa nenhuma. Em vez das palavras, a baba das palavras. E uma flor de calor poisada na língua brasileira. E a pérola nos dentes que colam as palavras que nós antes separámos. E os nós de nós na segunda pessoa do plural. Vejo chegar a discussão como se um príncipe da língua odiasse a língua da princesa, estrangeira só até às descobertas.

Há dias assim que se soltam do ar para dentro da vida como chuva miudinha. Sentimo-nos levemente tristes, desassobiamos, esquecemos as chaves de casa, deixamos que as palavras mais caras nos caiam das mãos e se partam. E damos por nós a colar, com a pastosa chuva miudinha, palavras partidas, noites fendidas por faíscas luminosas, cacos.

[o aveiro;10/04/2008]

encontro empolgante, precisa-se!

As sociedades modernas ou desenvolvidas científica e tecnologicamente precisam de trabalhadores científicos. A Europa precisa deles aos milhares. Portugal corre riscos sérios se não participar desse movimento de criação de empregos científicos produtivos. Todos sabemos isso, conhecemos as metas a alcançar e os prazos apertados.

Muitos dos empregos científicos dependem da matemática. Sabe-se que uma grande parte dos empregos científicos e técnicos exigem fina especialização em matemática, mesmo considerando que uma parte do trabalho produtivo trata da manutenção dos sistemas e que o essencial da coisa terá de ser assegurado por equipas multi-disciplinares, cada um dos cientistas e técnicos carece de formação matemática de elevado nível.

Há vários anos que os melhores estudantes de matemática do ensino secundário estão a ser atraídos para especialidades científicas, como medicina, arquitectura ou até enfermagem, e não vão para os cursos que mobilizam matemática ao nível mais elevado.

Perceber-se o desespero dos profissionais de matemática (em geral, professores do ensino superior nos departamentos de matemática e faculdades de ciências a leccionar cursos superiores de matemática e engenharia) que só excepcionalmente estão a receber jovens de alto rendimento em matemática e têm dificuldade em transformar a segunda escolha que lhes coube em sorte em estudantes capazes para o nível superior de proficiência matemática que se espera de candidatos a emprego em áreas dependentes da matemática a nível elevado, incluindo professores de matemática.

Já não se percebe que os trabalhadores científicos deixem de exercer pressão contra a degradação das profissões científicas dependentes da matemática que as tornou pouco
atractivas e, em vez de contrariarem essa fraqueza, antes procurem um bode expiatório no ensino secundário geral que, em si mesmo, tem de dar resposta social ao nível da cultura científica e da formação genérica dos cidadãos e não pode ser substituída por resposta parcelar exclusiva em necessidades da comunidade científica, que, sendo verdadeiras, não são mais que uma parte do problema.

Quem se preocupar com o trabalho científico, lutará contra a degradação das instituições de investigação científica e a debilidade do emprego científico. E estará livre para ajudar a melhoria de todo o ensino sem fazer dele o que ele não pode ser e, muito menos, bode expiatório de passa-culpas no atraso científico.

As profissões científicas têm de ser reconhecidas e têm de mostrar resultados empolgantes capazes de mobilizar os jovens, também em Portugal e não só em (neuro)cirurgia.

[o aveiro; 03/04/2008]