o homem por cumprir

já me aconteceu
andar meses sem ter medo
e sem pensar na morte

já me aconteceu
deixar passar os meses
sem pensar neles que passavam
nem pensar no que tinha feito
entretanto

gostava que a minha vida
fosse esse rio plácido de meses sem sobressalto
a pensar em nada
para além do trabalho
sem outro sentido para além do trabalho
do por fazer ao feito
sem qualquer glória nem lucro

eu nem me importava de nada ter
se pudesse passar sem me preocupar
com os outros ou o que eles são
ou o que eles fazem

ficar aqui de pé
a fazer o que se mostra por fazer
à minha frente
como a folha por cima
de uma pilha de folhas
com ordens para cumprir
que eu soubesse cumprir

até que um dia um sopro de morte
chegasse como a folha por cima
de uma pilha de folhas
com ordens para cumprir
e eu soubesse cumprir.

a altura

Este mês de Agosto que finda deixa-me na memória sabores a ouro e prata. Ouro e prata de lei.
Falou-se sempre de muito dinheiro olímpico que bem vistas as coisas é pouco dinheiro para os super-heróis em que nós apostámos todos os sonhos de glória patriótica. De Pequim, os porta bandeiras portuguesas trouxeram o ouro e a prata. Feitas as contas, temos de aprender a não transformar o dinheiro que gastamos em desejos de glória em realizações com resultados garantidos. Porque os resultados das competições humanas não são determinados ainda que possamos saber que um outro aparecem como muito prováveis.
É assim no desporto e na cultura e é assim também na educação. Não corre ou corre bem, corre mal, corre assim assim. Pelo meu lado, acho que a missão em Pequim (dos que disputaram a glória) correu muito bem. Não pude competir em Pequim, porque não atingi qualquer mínimo olímpico. Os que lá foram competir são os melhores de nós nas áreas desportivas em que competiram. Para mim, são o máximo. E estivemos lá, cada um dos nossos a fazer o seu papel - a competir para se superar e para ser superado por outros - e sem roubar o ouro merecido pelos outros. De certo modo, o valor do ouro de quem ganha é muito obra de quem se esforçou denodadamente para o ganhar sem o conseguir. Sem competidores, que valor sobraria para o bronze, a prata ou o ouro olímpicos?

A situação e a circunstância olímpica permitiram que dirigentes de comités, alguns políticos, alguns comentadores, etc se tenham envolvido em competições renhidas pelo ouro, prata e bronze da toleima. Temos muita dificuldade em atribuir as medalhas disputadas. Os disparatadores mostraram uma pontaria fantástica, os disparates levantados foram muito pesados, nenhum dos concorrentes deixou por mãos alheias os disparates que era a sua meta.
Nós sabemos como somos bons nisto.

Claro que o olimpo cá de casa é feito de assuntos mais prosaicos - segurança na linha do Tua e no bairro do Mocho, por exemplo. Escondemo-los enquanto ardia a chama olímpica e continuaram em segunda fila porque voltou o novo seleccionador de chuteiros a seleccionar e começou a liga com as notícias dos seus milhões (de adeptos? de euros? de contratações? de bolas? de pernas?). Claro que a competição de disparates sobre estes assuntos também foi muito animada. Estivemos à altura das situações. Gosto de nós.

[o aveiro; 25/08/2008]

o fim da viagem

Há quem procure um fim para a viagem. Outros procuram o fim da viagem. A nós nada disso nos preocupa. Caminhamos num e noutro sentido da mesma direcção e não temos outro fim em vista para além de caminhar. Sabemos o princípio e chegamos ao fim. O fim é a língua de areia, um dos lados da foz, o lugar que alguém acendeu na eternidade da noite. O fim estava lá quando lá chegámos. Na ponta da língua.

em viagem

Todos os dias pomos pés ao caminho.O ponto de partida de cada dia é o ponto de chegada do dia anterior. Em cada dia, fazemos a pé o caminho até ao dia seguinte. Não interessa o lugar onde chegamos. Sabemos que chegámos ao dia seguinte. Esta é a viagem.

A. de Agosto

Habituei-me às mudanças de tempo, às mudanças de estação, às mudanças. De tal modo assim me habituei que sou uma pessoa diferente em cada mês. Eu sou variável e dependente. Quando dou por mim a olhar para mim vindo de fora não vejo essas mudanças quando mudo de janeiro para fevereiro, por exemplo. Mas vejo-me mudado de forma dramática quando por acaso me vejo em Julho e depois em Agosto. Quase não me reconheço.
Aconteceu ter escrito umas frases em Julho que só voltei a ler em Agosto e fiquei verdadeiramente irritado quando as vi atribuídas a alguém que se faz passar por mim. Estive mesmo para reclamar. No futuro, em vez de A. Martins, vou assinar A. de Maio, A. de Julho ou A. de Agosto.

as caras mais a cara do burro feliz