as regras, as ruas, os nomes

Vou sempre pelo mesmo caminho. Como se tivesse medo de me perder um dia a caminho de casa ou a caminho da escola. Que relação há entre a caminho de casa e a caminho da escola? Não são um só.
Levanto-me cedo por saber isso. O caminho da escola é mais rápido que o caminho de casa. Não é por ter mais pressa de chegar à escola, mas é verdade que os minutos são passos contados. Como se tivesse medo da campaínha que marca as horas de entrar e de sair? Nunca saberei ao certo. Vou cedo para evitar contratempos.
Nas primeiras aulas, tenho de lembrar algumas regras aos alunos. Porque é que há a regra da pontualidade? Sempre que uma pessoa chega atrasada prejudica-se a si mesma. Só? Quem chega atrasado a um trabalho colectivo prejudica o trabalho dos outros que com ele contam se é que os não coloca em risco. As regras que nós aprendemos a seguir protegem cada um e todos nós. Nem precisamos de pensar. Sabemos que, ao fazermos a nossa parte, tornamos a vida dos outros mais fácil. E sabemos que a nossa vida é mais difícil quando alguém falha a sua contribuição. É assim em tudo.

Vou sempre pelo mesmo caminho. Olho os carros de frente e escolho o passeio ao lado dos carros que se aproximam de mim. Não sei se é regra, mas é mais fácil fugir do perigo que vejo aproximar-se de mim e é mais confortável sentir-me afastado do possível perigo que não vejo. Mais ainda quando falha o passeio. Faço os meus caminhos a pé e sigo regras e rotinas sem dar por isso. E de cada vez que descubro uma nova rotina que sem pensar cumpro, descubro também as pequenas contrariedades da cidade feita para os carros. E aprecio os carreiros abertos nos relvados por peões que seguem em frente depois de atravessarem uma passadeira. Os passeios em volta ficam cheios do cotão do abandono a que os peões os votam.

Dou por mim a pensar no exercício do poder. Entro na primeira aula em que possso falar de modelos matemáticos que apoiam decisões, escolhas. Ainda nos estamos a apresentar e eu pergunto a jovens, com mais de 15 anos, que vivem por aqui, os nomes das freguesias de residência, dos respectivos presidentes de junta e de câmara.

Eles não sabem os nomes. Não amaldiçoam pessoas por maus traçados, obstáculos, buracos. É tudo culpa do sistema.
A escola deve ensinar nomes próprios? Os nossos nomes?

[o aveiro; 18/09/2008]

duas sem três

disseste-me em cada rua o nome da rua
e tomei boa nota de todos os nomes

parece-me agora que os nomes
saltaram de placa em placa
e se fizeram linhas de outra placa
como um rol de exigências

na primeira linha, a liberdade

a noite, ainda a noite

cores daqui, de setembro

cores daqui, de setembro

assombração

Estou a escrever quando o lusco-fusco toma conta da terça-feira. Caminho devagar em busca do sentido do dia e da semana. O dia está bom e as palavras chegam vagarosas. Vejo-as em contra-luz e faço um esforço para as reconhecer pelo recorte. Nada. Têm de entrar pela porta e falar para que eu as reconheça. Estou a escrever contra o lusco-fusco, contra o jogo das sombras. Nestas horas, as sombras que nos seguem podem parecer ameaçadoras. Quando dizemos que temos medo da própria sombra falamos da sombra que nos persegue manhã cedo ou tarde da tarde. Ameaçadora, ela segue-nos ou precede-nos na caminhada. Assobiamos e damos graças por não ouvirmos o eco dos nossos assobios, que são as sombras dos assobios, que são assobios assombrados fechados nos túneis que atravessamos em vida.

Hoje, o Ministério da Educação decidiu divulgar alguns números sobre os resultados escolares do ano passado. E foi a habitual lufa lufa da comunicação social em busca das reacções a esses números. O habitual lusco fusco, a luz e a sombra. Todos nós andamos há décadas à espera de dias melhores, de resultados melhores. Muito devagar, temos cada vez mais jovens na escola, sem podermos descansar enquanto não temos todos os que dela precisam. Sempre que o número de jovens na escola cresce, sabemos que os resultados podem aparecer piores.

Mas este ano, anunciam-nos um crescimento da população escolar acompanhando uma melhoria dos resultados escolares. Isso pode significar que os professores e formadores fizeram o impensável lusco: com mais alunos, dos quais muitos jovens regressados do abandono a que votaram a escola, obtiveram uma melhoria dos resultados. A preparação e execução das actividades lectivas são obra autónoma dos professores e, em grande medida (de 70% a 100%), a avaliação escolar também.

Imediatamente se levantou o fusco, a grande sombra. Não pode ser! Pode lá ser! Há quem levante a poeira da suspeita, aponte os canhões de fumo do desconcerto sobre os resultados escolares. E há professores a acender velas neste desconcerto, vagos nas razões, perdidos de si mesmos.

Estes resultados valem o que valem. Devemos acompanhar os números com as cautelas necessárias, manter a exigência que a nossa dignidade exige e garante, estudarmos os factos e a consistência entre aprendizagens e classificações e ficarmos preocupados, isso sim!, por termos resultados ainda muito fracos e a exigir mais esforços.

A ser alguma coisa, uma pequena melhoria é pequena satisfação! Dor e assombração é que não!

[o aveiro; 11/09/2008]

elvas


do meu caminho, espreito para dentro das muralhas

o espírito de Elvas (em 2 de Setembro)

O Encontro da Associação de Professores de Matemática trouxe-me a Elvas. Aproveito para meter os pés ao caminho. Logo de manhã, palmilhei uma longa e larga avenida que passa pelo Coliseu. O Coliseu é, por fora, um cilindro. É um coliseu. As bancadas em anfiteatro cercam uma arena redonda. Nesta altura em que um palco toma conta da arena, de onde os convidados falam para os professores, custa-nos imaginá-la com touros e chocas, toureiros, bandarilheiros e forcados, cavalos e cavaleiros, para além do “inteligente”, claro. Um palco cercado por cabos e grandes máquinas de som e luz vai servir para um concerto de Rui Veloso que vai ocupar parte da minha noite de amanhã. Não me custa imaginar que aquele é um lugar bom para o concerto de amanhã.

Serve isto para contar a forma empolgante como o Presidente da Câmara de Elvas falou da sua cidade, das suas Escolas Secundária e Superior Agrária, dos seus Museus e Cine-Teatro, dos professores de Matemática que ocuparam a cidade e se repartem por todos aquelas instituições em certas sessões e se juntam no Coliseu para grandes sessões plenárias e para as festas.
Seve isto para dizer que o Presidente da Câmara de Elvas sabe da importância da fronteira quando ela serve para separar e sobre ela refere as muralhas e toda a monumentalidade convergindo para o alto centro, sabe reconhecer-se nas linhas de Elvas com que se cose, ao mesmo tempo que sabe da importância da fronteira quando ela serve para ligar, referindo-se sempre a Badajoz, aqui tão perto, como o lugar do vizinho que vem ao Coliseu pela auto-estrada Lisboa- Madrid a passar por Elvas e Badajoz e torna Elvas uma terra de atracção para congressos internacionais e nacionais, de associações profissionais, industriais, comerciais, ...

Palmilho o dentro e o fora das muralhas. E encontro a cada esquina caras conhecidas de professores dos ensinos básico, secundário e superior de Matemática. De certo modo, é como se estivesse na casa dos professores de Matemática. Sei que a partir de quinta feira, uma parte destes professores estará em Badajoz a reunir-se com colegas de Espanha num Seminário sobre a Investigação em Educação Matemática. Vão até lá sem sair de casa, sem dar o salto.

Sinto-me bem. Temos muitas dificuldades, é certo. Encontramo-nos no lugar certo para nos darmos conta delas e, quem nos dera, darmos conta delas com o espírito do lugar a ajudar.

[o aveiro; 4/9/2008]

as caras mais a cara do burro feliz