a longa marcha

Criança católica, ainda a cabeça era jovem deu-lhe para pensar de outro modo e abandonei a fé que guiava milhões de pessoas e toda a minha família. Estudante reneguei as tradições académicas da maioria dos meus colegas. Num país fascista e colonial, a cabeça pôs-me contra a guerra e contra o regime. Festejei a democracia e, ainda a festa não tinha bem começado, escolhi as ideias das minorias de esquerda, culpado de nem ser de direita nem participar das unidades festivas da esquerda. As ideias dominantes e lucrativas não me seduziram. Participei em manifestações quase solitárias pelos meus direitos e pelos direitos de homens e mulheres no mundo. Nas batalhas políticas, a minha cabeça não votou em qualquer dos partido do poder democrático. Ao contrário de milhões de pessoas, meus compatriotas e colegas respeitáveis, não votei nem no PS nem no PSD, não votei em Cavaco, Durão, Guterres ou Sócrates. Saí e entrei em pequenos partidos e sindicatos ao arrepio das maiorias. Também profissionalmente assim me construí. Defendi que deviam ser cumpridos programas, mesmo quando isso parecia impossível, e ao arrepio das maiorias combati e defendi ideias para programas e exames. Defendi mudanças de arrepiar para as escolas. Defendi aulas de 90 minutos ou o fim das desocupações dos alunos nas escolas quando havia manifestações de estudantes e professores contra essas mudanças. Ao arrepio das maiorias, defendi professores e estudantes antes e depois do 25 de Abril. Ao arrepio de maiorias, colaborei em grupos de trabalho, conselhos e comissões várias para fazer das minhas ideias alguma acção, sabendo que o país era e é governado por partidos que nunca contaram e não contam com os meus votos. Dando muito valor às minhas ideias, não desprezo as ideias dos outros e presto muita atenção às acções dos outros. Pela minha cabeça, condeno sem rebuços o que me parece condenável. Nunca me passou pela cabeça condenar os outros pelas seus pensamentos, quando estes não ofendem direitos fundamentais, nem pelas suas acções quando legítimas ainda que contrárias ao que penso ser certo. E não sendo tolerante, sei-me limitado e sei o mais simples de tudo: há ideias diferentes que convencem mais gente que as minhas. Todos os santos dias da minha vida foi assim. É assim hoje e continuo assim eu. Até ao fim da vida? Talvez seja afinal a velha honra que me guia a cabeça. Talvez seja assim para ser professor. A liberdade passa por aqui. A democracia também.

[o aveiro; 13/11/2007]

aqui mesmo, o nosso pequeno bosque

o telhado de vidro


olhamos para o rectângulo tão limitado
e tão aberto
que podemos imaginar como é fora dele,
olhar para cima e para baixo,
para a direita e para a esquerda

sem cuidarmos de saber onde começa
nem onde acaba
a multidão de telhas

que importa saber quantas
se vemos como são tantas
e vão encaixadas
de mãos dadas

das ruas, a mais bela, a nossa


a beleza das ruas é a nossa beleza

a primitiva forma lembramos como era sem a forma
do que agora é não era mais que um desenho ou um desejo
a cor da vida que veio morar em nossa casa
tem hoje idade e boca para o outono do beijo

para darmos graças ao arquitecto de então agora
pelo detalhe das cores impressas no ar
por esta instantânea felicidade no lugar e hora
da ave que ensaia num bater de asas o nosso olhar

a beleza da nossa rua está ao nosso espelho

do alto, as oito e vinte e cinco

desenho, logo existo

A cauda da causa

Por estes dias, não há notícia que não fale do pavão.

O passarão adorava passear-se e pavonear a poderosa cor do seu papo. Sabemos como ele lamenta que as convenções não lhe permitam que exiba a sua magnífica cauda quando ele a abre no máximo esplendor de cauda de pavão. Para as visitas, apresenta-se o ministro com cauda tão brilhante como um piano de cauda.

Mas hoje, as notícias não dão margem a dúvidas e é do domínio público que os negócios do pavão ou são escuros ou são sujos. Alguns passarões ainda passam pelo desfile de vaidades, com a cauda de boca fechada.

O pavão de hoje está discreto, mais do que é seu costume. Não tem comentários a fazer, espera para ver que nada do que parece é. Quando chega a tarde, já a cauda o incomoda, uma manhã inteira trilhada no trânsito dos acontecimentos. Também lhe dói a inacção do papo. As televisões fazem-lhe perguntas sobre o tempo que faz nos paraísos fiscais, sobre o dinheiro que desapareceu, sobre a cauda da causa. Não responde a perguntas quem está habituado a falar por cima de toda a suspeita e até acima dos partidos que fizeram dele o rico ex-governante. Ele só responde a pedidos.

Vai para casa. A mulher vem recebê-lo com o costume do beijo. Pergunta como lhe correu o dia a ele e a todos os seus amigos que ela conhece ou de ouvir falar ou das filas de cumprimentos das tomadas de posse e poder de ministros e secretários. Ela gosta sempre de saber da saúde de cada um deles. Ele diz que estão todos bem, na esperança que ela volte para a fantasia da vida.

Mas sabe que ela vai ouvir notícias e fica à espera. Quando ela aparece a perguntar-lhe se é verdade, ele responde: É. Que tudo está a correr mal e que estão arruinados, ele responde: É claro, mulher, que estão arruinados. Quem? - insiste ela. Nós? Que ideia, mulher! Arruinados estão os do costume. Quem? insiste ela. O estado, os contribuintes, os outros. E a nós? Não acontece nada? Mulher! No paraíso, o que queres tu que aconteça? E podemos voltar à terra? Talvez volte mais tarde, se for bom para os negócios. Como salvador.

[o aveiro; 06/11/2008]

as caras mais a cara do burro feliz