o homem sem qualidades

Há muitos anos atrás, estava eu a morar e a trabalhar em Cabo Verde, uma professora leu a sina que está escrita na palma da minha mão. Não hesitou muito em comunicar-me a crua verdade da minha vida: em tudo eu era uma pessoa banal e muito desinteressante. Era assim como professor e assim era no amor, como pai, filho, irmão e... seria o mais que provável avô banal. Aceitei muito bem essa maldição. De certo modo, preferia assim e esforcei-me por aperfeiçoar a minha banalidade. Para mim, isso significava ir fazendo o que é preciso e o que me pedem, momento a momento. Dentro do que eu entendia por banalidade, precisava de procurar fazer o melhor possível o pouco e o muito que fizesse. Este ideal de banalidade foi-me colocando nos acontecimentos, mas sempre em segunda fila. Não disputava poderes, abandonava as batalhas mesmo que as pudesse vencer, não me deixava envolver como funcionário de causas para não julgar quem não fosse da causa, não cobiçava a vida alheia, etc: seguia religiosamente os 10 mandamentos da banalidade. Nunca pensei é que alguém um dia viesse somar as pequenas parcelas da minha vida banal e à soma atribuísse sumas virtudes, mesmo que banais.
Como é que um homem banal que passa a vida a esconder-se na banalidade pode tornar-se sombra para alguém? Como um amontoado de banalidades, claro. Sem querer passei a ser visto tal qual sou, um monte de banalidades. Só que agora há quem pense acusar-me da banalidade que eu, qual banal laborioso, construí cuidadosamente.

Tenho de confessar que sou assim, mesmo bom a fazer e a dizer banalidades. Nunca fui secretário de partido ou sindicato e também não sou contra partidos ou sindicatos, nem renego os meus votos neste ou naquele partido. Não sou banqueiro nem joguei na bolsa de valores sem valores. Custa-me a aceitar as mudanças de paleio sobre as virtudes do mercado de valores sem valores e custa-me a compreender como é que os defensores da privatização a todo o vapor se tornam defensores da nacionalização do capital em risco ou de risco. Banalidades de um esquerdista banal.
E sou banal em toda largura do olhar: se a minha profissão precisa de balizas para se dignificar perante a sociedade, digo-o, mesmo quando me confundem com o governo dos meus colegas não banais; se o ministro das finanças do meu país não está disposto a dar aval nem apoio ao banco de um qualquer bem sucedido gestor de fortunas, eu saúdo-o nesse gesto. Coisas banais. Nada há aqui que clame atenção. A minha experiência de banalidades diz-me que as coisas banais só se explicam de forma banal.

[o aveiro; 27/11/2008]

santiago

desenho, logo existem

do desalento e do desabafo

Os primeiros dias desta semana deixaram-me na memória impressões de acidentes brutais, da estranha e meio encapotada violência dos membros de claque e notícias de variadas reuniões sobre avaliação de professores, marcações de protestos e greves, ...
Devo confessar que admiro a resistência das pessoas que vão de uma reunião para outra, ouvindo opiniões e falando sobre saídas e soluções. Claro que são igualmente admiráveis todos os que, de reunião em reunião, sem dar mostras de cansaço, se exaltam em bloqueios às saídas para as mesmas situações. Fico cansado só de imaginar essas vidas, enquanto vagueio pelas reuniões que me cabem em sorte. Mais cansado ainda me sinto quando tenho de viajar entre Aveiro e Lisboa para olhar reuniões. Começo a sentir-me um estranho nas participações por dever de ofício. De certo modo, é como se não estivesse nos lugares onde estou e não fosse eu a falar quando falo ou não fosse eu que estivesse a ouvir. Muitas vezes, penso que não sou eu quem pensa da forma que penso e, ... quem me dera estar noutro lugar e noutro tempo.

Mais estranho ainda me sinto em algumas sessões sobre Matemática e ensino de Matemática. Há conferências em que todos quantos se debruçam sobre o ensino não superior raramente caem nele; personalidades e professores do ensino superior olham-nos como se olhassem para baixo, de um varandim. Muitas intervenções cheiram a já visto; outras cheiram a piada interessante; algumas opiniões são a alta voz do senso comum ou da falta de senso que são coisas de boa e má educação. Sinto-me sempre um pouco insecto preso no fio de ouro dos discursos simultaneamente projectados e lidos. Claro que, em cada sessão, há sempre quem nos ensine e nos lembre alguma coisa.

Sinto-me tão enfadado como tentado a promover uma conferência sobre o ensino superior em que os oradores sejam todos professores do ensino não superior. À semelhança de conferências a que assisti, os conferencistas não teriam mais que dar um exemplo ou outro de algum erro grosseiro ou aspecto mais ridículo de aulas de professores do ensino superior (que, sendo difícil tarefa, não é missão impossível).

Em acto de contrição, a comissão organizadora da conferência sobre as questões e soluções para o ensino superior de matemática assumiria a responsabilidade pela parte da formação dos professores do ensino superior que coube a professores do ensino não superior. Só para marcar uma diferença.

Ninguém tem culpa da incompreensão que me ataca. Sopro para este saco de papel e suspendo a respiração. Até voltar à vida de sempre.


[o aveiro; 20/11/2008]

as janelas

pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui