o homem sem qualidades

que aconteceu a 11 de março? de que ano? em 1975, acordámos estremunhados a 11 de março e fomos (eu e um amigo) fazer parte do dique entre os dois rios que se formaram em frente ao ralis(?). reconhecemos um amigo fardado e aparentemente envolvido ou surpreendido pela coisa. por ali ficámos, ouvindo, vendo e falando, até percebermos que quem ali estava sabia pouco das razões da sua presença dividida pelos dois rios paralelos e até tudo se transformar na cena fotografada e filmada e radiodifundida que a transforma noutra coisa. então passámos a ser os que saem de cena (drama-tragédia-comédia?). golpe? pelo sim, pelo não, optei por não voltar aos serviços cartográficos nos imprevisíveis dias seguintes. não sei se o meu amigo voltou à sua unidade na marinha. aproveitei para vir para norte, passando por uma reunião clandestinada na vergada tanto quanto me lembro e não me lembro se passei pela família a morar ali perto. quando dias mais tarde voltei aos serviços ninguém tinha dado pela minha falta ou ninguém me falou disso. como se nada se tivesse passado, a vida voltou ao que fora: técnico militar da cartografia do dia e político nos sonhos das ruas dos sonhos.
não me lembro ou pelo menos não guardo provas de termos sido cartofotografados.

perguntas soltas para meias revoltas

por estes dias corre a vida por uma economia paralela
a todas as ruas humanas permanentemente vigiadas
por matilhas tensas para um salto prodigioso

quantos são os lobos quantos são os ladrões verdadeiros
quantos são feras necrófagas quantos os oportunistas
quantos os que contam as ocasiões para a oportunidade
(que faz o ladrão)

quantas mantas de retalhos sobre os olhos fechados e a boca
quantas narinas abertas ao vento das palavras
quantas palavras sussurradas por pares de olhos fechados
(para não ver a dor dos outros)

quantos cheiros fazem uma vala comum
quantos delírios formam um país de navegadores
quantos submarinos em docas secas
(vales de lágrimas e dinheiro pingado e evaporado)

quantos são
quais cheiros são adocicados pelo terror
quais as ciências dos que enchem a boca de razão
(prática toda ela como se fosse pura)

quais são os crimes vitoriosos em palácios da justiça
quais são os frufrus dos novos palácios
quais são os derrotados quais são os vencedores

quais são as necessidades quais são os palácios da caridade
quais são as quadrilhas internacionais quais são os bandidos
quais são os viajantes entre países credos e raças quais são as vendas

quais são os sonhos que são pesadelos
de quem são os sonhos e quais  são pesadelos de outros quais são
que nomes usam dentro de portas que nomes fora de portas

que língua falam que palavras dizem que fardas usam para as guerras
quando as travam quando decidem as ordens de compra e venda
quais os mercados onde compram escravos que executam as ordens

quantos quais quem são e de onde

viajam de lugar nenhum para nenhures
habitam num real mercado virtual da economia global mundial virtual
verdadeiramente paralela à humanidade

cortam-nos ao meio de nós estão no meio de nós são donos da casa
andam a despejar o cheiro do fel para matar a fome e sede
de justiça e a fome e a sede verdadeiras

entre nós eles contam-se pelos dedos
cortam-nos os dedos pelos anéis
e para não podermos contá-los nem apontá-los a dedo

que é só disso que têm medo
de resto contam com a ideia do medo de todos nós
em cada um de nós afinal o que são dias um dia não são dias.

Passos foi a votos

Pediu e recebeu os votos do psd ou do ppd ou da troika. Em sonhos, não tinha lido  "Passos vai a votos" e antes "Passos vai e não volta", porque lhe tinham oferecido uma nova oportunidade e ele tinha ficado a estudar Filosofia pela Sorbonne, em boa companhia. Parece-me que Passos e Sócrates são muito parecidos: começaram a estudar na JSD para passar por universidades de conveniência (ou lojas de padrinhos) até chegarem ao governo, passando por conselhos de administração ou similares. Estudar só mais tarde.

Uma morte de uma estação, Antónia Pozzi

Messaggio

E tu, stella acta notturna
splendi ancora
se per il solco delle strade
grida la triste anima dei cani.

Sorgeranno colline d'erba magra
a coprirti:
ma nel mio buio conquistato
brillerai, fuoco bianco,
parlando ai vivi della mia morte.

(prefácio de José Carlos Soares, sel, e trad, de Inês Dias)

caminhos do deserto

mais um ataque de tosse e acordei
para um duche de manhã solarenga
antes de vestir um fato cinzento
domesticado para passar por um funeral

mais um ataque de tosse e levantei-me da cadeira
para sair a caminho da igreja onde as pessoas velam
uma ausência

ataquei o cachimbo com gestos precisos
para seguir a caminho da biblioteca mais perto

e desistir da igreja onde não faço falta à ausente
nem a mim enquanto penso num sonho interrompido
pela memória de quem é já vento e viagem de fumo

desfeita por um novo ataque de tosse que bate à porta
de capa dura do livro  dos mortos em vigília

Os doentes...

... esperam na sala de espera antes de serem examinados e internados. Raros são os doentes mentais a quem se recomenda como terapia algum tempo num governo.

mumumummmmmm

eu sei que mostras olhos de boi manso

mas quem atenta no pescoço dobrado para a frente
enquanto velas ameaças
sabe de que maldade és feito animal

Assombração


Ontem compareci à chamada, na Associação Comercial de Aveiro,  para mais uma sessão plenária (plena de gente daqui) sobre o canal central e a ponte pedonal, promovida pelo Diário de Aveiro. Antes de lá chegar, sempre fui tirando fotografias ao canal para memória futura ou para me lembrar o que eu gosto de ver (pela alvorada, durante o dia, à noitinha ou alta noite de murmúrios). De pés no chão e olhos na água, caminho  pelas margens muitas vezes - canal de s. roque, canal das pirâmides, canal central, ...  Vejo as casas refletidas nas águas e chego a querer morar em casas ao espelho. Gosto de pontes, claro. Uma ou outra para me deixar levar de uma margem à outra. Mas gosto principalmente da vista da água e de quem por  lá anda. E gosto da água do canal central,  onde se espelham barcos, casas, árvores, ...  e o céu que as cobre. Há troços de água sombria, pontes entre résteas de céu escondidas na sombra das pontes. Ainda há céus sobre as águas: fonte nova e abençoado canal central que me mostra a água do céu mergulhado num espelho sem sombra.
Uma ponte ali? Só como assombração!

Ferreira Fernandes:
Não leia, isto é velho de 75 anos

(enviado por Diana Andringa)

A agência de rating Moody's baixa a nota da Grécia; as taxas de juro explodem; o país declara falência; a população revolta-se; o exército toma o poder, declara-se o estado de urgência e um general é entronizado ditador; a Moody's, arrependida pelas consequências, pede desculpa... "Alto!", grita-me um leitor, que prossegue: "Então, você começa por dizer que vai recapitular e, depois de duas patacoadas que todos conhecemos, lança-se para um futuro de ficção científica?!" Perdão, volto a escrever: então, recapitulemos. Só estou a falar de passado e vou repetir-me, agora com pormenores. A Moody's, fundada em 1909, não viu chegar a crise bolsista de 1929. Admoestada pelo Tesouro americano por essa falta de atenção, decidiu mostrar serviço e deu nota negativa à Grécia, em 1931. A moeda nacional (dracma) desfez-se, os capitais fugiram, as taxas de juros subiram em flecha, o povo, com a corda na garganta, saiu à rua, o Governo de Elefthérios Venizelos (nada a ver com o Venizelos, atual ministro das Finanças) caiu, a República, também, o país tornou-se ingovernável e, em 1936, o general Metaxas fechou o Parlamento e declarou um Estado fascista. Perante a sua linda obra, a Moody's declarou, nesse ano, que ia deixar de dar nota às dívidas públicas. Mais tarde voltou a dar, mas eu hoje só vim aqui para dizer que nem sempre as tragédias se repetem em farsa, como dizia o outro. Às vezes, repetem-se simplesmente.

Passos

quando falas do zero absoluto como se neutro fosse o que é absorvente
as pessoas adivinham-te cornos onde tiveste caninos

A ponte

Na ultima sessão pública da Câmara, muitos mais aveirenses do que o costume compareceram para discutir a ponte pedonal do Rossio para o Alboi. Muito bom o trabalho de grupos de cidadãos atentos e capazes de discutir verdadeiramente a cidade. E correspondido, como se viu.
A ponte pedonal foi defendida pelo presidente da Câmara com vários argumentos. Um deles é m argumento habitual - facto consumado que se aceita discutir; o povo pode discutir, mas não pode mudar uma decisão errada ou, pelo menos, mal informada e mal debatida.
O outro é a declaração de amor pela mobilidade dos peões. No regresso a casa, verifiquei que ainda existem as ruas com passadeiras sem rampas, com rampa de um só lado da rua, sem passeios ou com passeio interrompido por muro, com charcos de água para regar peões à passagem dos carros, com obras a interromper passeios sem qualquer cuidado digno desse nome que é o mesmo que dizer sem qualquer inspeção camarária. Ainda existem. Passei por elas. Sei que o amor da Câmara pelos direitos dos peões é mentira para os peões verdadeiros que também andam a pé pelas ruas quando vão das suas casas para o trabalho. Talvez seja verdade para os presidentes de câmaras que vão de carro para a câmara ou vão de carro até aos lugares feitos para peões atletas. O enquadramento da ponte numa estratégia que pretende afastar os carros do centro da cidade significa o quê para quem vive pelo seu pé? Uma estratégia boa, dizemos todos. Um argumento oportunista, paleio politicamente correto por quem mantém uma prática quotidiana de desprezo pelos peões e desprezo pelo debate sério com consequências e mantém o hábito ordinário de não responder aos cidadãos com problemas concretos enquanto mantém o ambiente de diálogo para conversas da treta.

as caras mais a cara do burro feliz