Abril

continuo a escrever para ontem como se não pudesse parar. escrevendo pequenas coisas matemáticas que já não contava escrever. fazem-me encomendas porque pensam que eu preciso que me ajudem a passar o tempo. e eu não consigo dizer que o meu tempo já passou. há dias cheios de coisa nenhuma, mas cheios. o que a mim interessa ou interessava é que deixou de ocupar-me.

Abril


um dia destes começo a dizer coisas que não devo. ou um dia destes começo a dizer as coisas que devo?

Abril


um dia destes eu vou parar no meio da rua para pensar antes de continuar no caminho do costume.

Abril


como eu gosto da chuva que cai por estes dias. até se pode chorar para acrescentar lágrimas à chuva e não para chorar simplesmente.

Abril


às vezes ficamos assim lixados e tristes, sem saber o que dizer. talvez porque damos por nós a querer falar por falar e isso só podemos fazer com quem nos pode ouvir para se desatar a gargalhada que queremos ouvir.

Abril


lembro-me de um tempo em que desenhava cravos vermelhos em paredes abandonadas. já não sei desenhar cravos automaticamente.lembro-me de uma idade em que gritava não silêncio não silêncio não a acompanhar a marcha compassada de uma multidão. da cadência dos batimentos nos empedrados ainda me lembro, mas não guardo de memória o som da cadência não silêncio não silêncio não silêncio que, fila a fila, os sapatos da multidão repetem ao toque do tambor ou das palavras de ordem. vaga a vaga em frente. hoje há uma desordem nos meus passos e pensamentos feitos de uma vontade intensa de que não se possa prever o meu próximo passo. como se tivesse passado a fazer parte da multidão que salta fora da cadência previsível, em vez de ser o que já fui, megafone ou tambor a ordenar uma marcha com destino conhecido.

Abril


sigo um pequeno pássaro que saltita à minha frente. parece distraído, mas não deixa de debicar pequenas coisas que eu não vi e nem sei se existem. sigo-o e estendo as mãos como se fosse apanhá-lo. parece que o apanho e seguro-o de encontro ao meu peito, uma mão firme e fechada a segurá-lo gentilmente e a outra que o acaricia. gestos para um público que nem sei se existe. sigo com passos firmes pela minha rua com um pássaro ao colo. é o que parece. mas eu sei que ele se escapou sob o carro mais próximo e vi-o a voar instantes depois aproveitando o vento que sopra mansamente, tão mansamente como a minha mão o acaricia no gesto de o acalmar no meu colo protetor. um pensamento sobre a carícia e o calor das minhas mãos para o pássaro que voa. nada é melhor que acariciar quem voa.

Abril


Escola José Estêvão

as caras mais a cara do burro feliz