rasgões


vasculho entre os papéis para escolher um papel - é sempre alguma coisa que já foi outra coisa nesta vida - onde se desenhe uma curva. e encontro papéis pintados que mais vale serem pedaços sem sentido.

a cultura no olhar

Dia a dia, lá vamos mudando. Damos pelas mudanças reais já elas tomaram conta de nós, já nos acomodámos a elas e, mesmo que o quiséssemos, não podemos mudar de passeio e acabamos a falar com as mudanças que dentro de nós moram.

Algumas mudanças seguem-se a pequenas decisões, a pequenas desistências, a pequenas guinadas nos pontos de vista.

Há pouco tempo, decidi apurar ainda mais a vista a olhar para o ensino no pequeno círculo em que me movo. Trabalhamos aqui, mas se não focamos o olhar para ver perto, acabamos por falar do nosso círculo, contaminados pela ideia do que acontece em geral. Se apuramos o olhar sobre a realidade da nossa esquina, esquecendo o que sabemos de ouvir falar, vimos aspectos que nos escapavam mesmo sendo parte da nossa circunstância. Ou nos tornamos mais optimistas ou nos tornamos mais pessimistas, porque desistimos de muitas desculpas e porque recusamos culpas que, não sendo nossas, são a nossa circunstância.

Deixamos também de tentar ser exemplo para fora de nós. Desistimos um pouco, para tentarmos ocupar um espaço feito tanto de intimidade como de exposição. Contamos pouco. E sabemos que somos esse pouco que é tudo o que podemos dar. Precisamos dos outros só no que eles nos possam dar e recusamos nos outros o que eles nos podem tirar. Não queremos receber qualquer totalidade de outros e celebramos os pequenos detalhes.

Por exemplo, comecei a ficar muito sensível a todos os comentários que apoucam a matemática no que ela tem de parte da cultura geral ou que diminuem a matemática, ao considerá-la tema impróprio para o quotidiano, desnecessidade, actividade improvável e interesse exótico de excêntricos, razão particular tanto quanto a literatura ou a tecnologia respondem a necessidades e se tornam razão da sociedade toda. A escola trata do culto da cultura geral, dos bens do espírito e da saúde do corpo. Pequenos disparates que se repetem, dia após dia, constituem a persistente vontade de amputar a cultura em nome do maioritário (des)gosto.

Estou a mudar-me para dentro do olhar. Como estão a ver.

[o aveiro; 28/09/2006]

tipografia

Fui tocado pelo chumbo das letras, pelos tipos, pelas formas de certas letras e símbolos. Ainda hoje guardo uma imagem de tipos alinhados na bancada da tipografia matemática e uma reverência pelas impressões de alguns livros antigos (em particular de matemática). Os computadores apareceram na minha vida acompanhados pelas letras, pelas fontes, pela diversidade fascinante dos tipos clássicos que, para muitos, parecem todos o mesmo. (Com muito prazer e orgulho patriótico :-), na Pública, li uma entrevista feita a um inventor de letras português, Mário Feliciano.
Ele fala de assuntos que me tocam particularmente.

E cita Oscar Wilde, para dizer que a moda é uma forma de gosto tão má que tem que ser trocada todos os seis meses. Pois.

o dia em que descobrimos o país que era

O governo admite impor taxas moderadoras à prestação de cuidados de saúde até agora gratuitos. E acrescenta que tal não tem apenas razões económicas. É mais uma forma de moderar o acesso ao internamento ou à cirurgia de ambulatório.

Ficamos a saber que há alguns portugueses que têm tendência para abusar do internamento e outros com uma queda pela auto-flagelação com cirurgias desnecessárias.

Quem poderá desejar estar internado, sem disso precisar, num hospital português? Talvez os idosos abandonados pela família e pelo estado providência incapaz de criar sistemas de apoio eficazes à pobreza da nossa terceira idade.

Se há quem queira abusar destes serviços e precise de ser moderado na sua gula, é preciso sabermos em que país vivemos e como deixámos que concidadãos europeus tenham caído nas malhas de tal degradação da sua qualidade de vida. Não estamos a falar de auto-marginalizados que, quando a má sorte aperta, não têm força nem ânimo para abusar de tais serviços. A não ser que sejam apanhados na rua pelas organizações de caridade ou pelos serviços de urgência do estado a que chegámos. Mas não pode ser a estes que o ministro se refere porque estes nunca poderão pagar qualquer taxa moderadora e há muito tempo que moderaram a sua esperança em serviços públicos de saúde.

Ele está mesmo a falar dos remediados pobres e dos pobres que vão pagando as taxas. Ele está mesmo a falar de mais uma medida das muitas destinadas a liquidar o serviço nacional de saúde. Mais um prego para o caixão do serviço público gratuito quando essencial e insubstituível e insuprível para quem não tenha dinheiro que o pague. Uma a uma, como coisa pouca, cada medida é uma contribuição inestimável de cada ministro capaz de liquidar os serviços que jurou defender no acto de posse. E dirão sempre que cada vez que tomaram uma medida impopular o fizeram com o fito de viabilizar o que vão liquidando. Nós sabemos que serviços que não há são viáveis e até são a custo zero para os contribuintes Só que, deixando os ricos sem obrigações solidárias, os pobres vão ter de pagar tudo para sobreviver ou nada... para morrer.

Um dia ainda vamos acordar sem país.

[o aveiro; 21/9/2006]

como é viver longe daqui

como será viver longe daqui sem ter dado um passo sequer

se ainda nem sei sair para uma varanda de onde possa cair
e repentinamente aprender a necessidade de voar

aprender para ensinar não é secundário

1. Nascido na década de 40 do século passado, lembro-me vagamente de um ou outro dos meus professores. Como se estivesse inibido de levantar os olhos para ver e conhecer os professores que eram pessoas do outro mundo. Lembro-me de ter feito parte da escola na aldeia. Mas não me lembro de ter feito parte da escola na cidade no sentido de que a aldeia que eu era me separava das pessoas da cidade e ainda mais das pessoas da escola na cidade.

2. Tento lembrar-me dos verbos. Que ordens me dava a minha mãe ou a minha irmã para que eu as trocasse por aquela escola? Ia para a escola para aprender ou para ser ensinado? Aprendíamos a trabalhar, aprendíamos um ofício, ... E na escola? Lá íamos, nem cantando nem rindo, para sermos ensinados.

No liceu, os professores ensinavam e reprovavam-nos ou passavam-nos. É verdade que nos faziam perguntas verdadeiramente assustadoras e até nos repetiam as respostas que devíamos dar para ver se nós decorávamos algumas delas. Não me lembro de alguém se preocupar em distinguir quando eu tinha decorado o que queriam ouvir de quando eu tinha compreendido e aprendido. Porque talvez se pensasse que o importante nos liceus era o conhecimento armazenado e conservado para ser debitado e não o conhecimento para a acção. De vez em quando ponho-me a pensar que não era assim nas outras escolas. Mas não sei.

3. Ser professor era ensinar. E um professor ensinava bem mesmo quando ninguém aprendia com ele. Havia mesmo algumas supernovas que quanto mais brilhassem a recitar frases incompreensíveis mais magníficos professores eram. Padres e professores assim afiavam as suas línguas do alto das suas cátedras e púlpitos.

Ainda há artistas desses. Nem dão pelo deserto na sua vizinhança ou gostam de pensar que tudo é mais sossegado quando estão sozinhos e que tão grandioso é o vazio que os cerca como a multidão que imaginam ululante, canalha e incapaz de se maravilhar com os perdigotos das suas citações.

4. Dos professores sabíamos que tudo sabiam e ensinavam. Aprender era ocupação dos outros, se a tanto se atrevessem. Sabemos de quem nada compreendesse e fosse capaz de repetir tudo tal qual o que era ouvido e achado até ser certificado como repetidor. E apesar de tanto ensino puro e duro, para poucos realmente, sempre houve quem aprendesse.

O verbo aprender não constava dos documentos dos ministérios da instrução. Mas não me consta que a falta do verbo impedisse de aprender, até a quem fosse só ensinado.

5. Dizem que nos últimos anos, o sistema educativo trocou tudo e agora foi banida a palavra ensino e a ocupação do sistema passou a ser verificar e garantir as aprendizagens dos jovens. De tal modo que aos estudantes se desculpa que não tomem a iniciativa de trabalhar e aprender e que aos professores se proíbe que ensinem.

6. Reconhecemos facilmente que precisamos hoje mais do que ontem de ter certezas sobre o que aprendem e como aprendem os nossos jovens. Aumentámos muito a quantidade e variedade dos meios de comunicação e a incerteza sobre os seus conteúdos. Eu soube repetir as orações que me ensinaram sem lhes dar sentido e ainda hoje as posso repetir e com a compreensão que as tornou inúteis e à sua finalidade primordial de relação com o fantástico para lhes restar pouco mais que um pó de nada. E sei que os jovens vão à catequese e lamentavelmente não recitam os 10 mandamentos, embora saiba que, de entre esses, jovens há que cantam todos os andamentos de complexas obras musicais. Precisamos de ensinar.

7. O problema do falhanço da instrução no regime fascista não foi a falta do verbo aprender nos documentos oficiais. A falta do verbo ensinar nos documentos oficiais actuais não é a causa do falhanço da educação no nosso regime. Seria fácil melhorar rapidamente se o problema fosse de palavras, se o problema não fosse precisarmos todos de trabalhar e aprender muito para ensinar o que é preciso.

[a página da educação; 10/2006]

ipod

Ontem, passava pouco das oito horas, deambulava pela rua da escola soares dos reis do porto.
Ouvia música e imaginava-me em memphis ou coisa assim, não explico porquê. Para atender um telefonema, tirei os auscultadores e bati contra um transeunte a quem devo ter pedido desculpa. Quando acabou o telefonema, voltei a pôr os auscultadores e nada ouvi. Fui procurar a fonte dos sons e ela não estava no sítio. Percebi que não tinha sido abalroado por acaso e ainda fui até ao jardim à direita no fim da rua para falar com quem me tinha levado livros e poemas ditos, música, fotografias, um disco duro com sistema e... tudo o mais que esqueci ou não interessa para estas confissões.
Passados poucos minutos, estava a trabalhar e a esconder a minha profunda irritação.

Hoje, deu-me para pensar que o ipod, agora roubado, tinha vindo substiuir o cachimbo das minhas ruas, por mim mesmo perdido, achado e perdido em gestos de puro amor, solidão e companhia, ... E dá-me para a tisteza e para ter pena de mim mesmo. Muita pena mesmo. Muita vontade de ensimesmar e esquecer-me de sair. Assim mesmo ... ensimesmo.

E volto a fumar! Não me roubam cachimbos. Posso perdê-los. O que me roubam não posso perder.

O que é importante

Esta semana recebemos a prova da nossa normalidade social. Todas as crianças e jovens regressam à escola - básica ou secundária. Há quem já nem pense na importância deste acontecimento e, embora seja sempre notícia, o facto dos regressos gerais à escola aparece muito diminuído comparado com uma pequena nódoa na gravata de algum importante, mesmo que mal educado e iletrado.

Nestes tempos que vivemos, podemos saber que nem tudo está perdido se, numa data prevista, as crianças e jovens forem chamados e respondam a cumprir um imperativo social que ninguém discute por princípo e todos discutem no fim. O regresso à escola em cada ano é um facto e todos saúdam o regresso à escola. O abandono da escola é um facto e todos condenam o abandono escolar.
A sociedade destes tempos que vivemos é uma escola. Assumimos hoje que todos, desde o nascimento à morte, são aprendizes e de escola. Vivemos numa sociedade onde todos precisamos de aprender ao longo de toda a vida, porque tudo se passa num mundo feito de mudanças. Para sobreviver neste mundo em mudança, precisamos de mais escola e mais escola de todos para todos. Por sabermos isto, saudamos o regresso à escola e lamentamos quando alguém abandona a escola básica o que nos obriga a novos esforços para inventar o regresso ao futuro de quem se refugiou em algum espaço exterior à sociedade escola.

De que escola precisamos? Há quem pense que a escola necessária a todos não é a escola daqueles que podem dirigir e salvar este nosso mundo do estado em que está. Há quem pense que a escola para todos dá conhecimentos e competências técnicas como instrumentos de vingança. E que a escola única para todos é uma ficção, por poder ser sempre recusada por uma parte, e uma realidade terrível, porque prejudica os melhores sem fazer coisa que se veja pelos que estão longe da escola.

À margem de todas estas discussões, neste mês de Setembro em que recordamos tantos terrores, horrores e.. guerras preparadas e travadas nas melhores escolas do mundo, escrevo aqui a celebrar o nosso país do regresso à escola, este acontecimento que nos diz que ainda não nos perdemos uns dos outros e ainda acreditamos nuns e noutros para mais um passo desta dança de paz... Mesmo sem esperança nos milagres que nos pedem, voltamos a tentar. Prometendo não pisar o nosso par, esse outro que ainda nem conhecemos. Sabemos que foi convidado e que isso é o mais importante.

[o aveiro; 14/09/2006]

eu vi como

Eu via como a minha avó puxava de dentro do avental
o lenço encardido e limpava a lágrima amarela
de qualquer criança arreliada por não voar

em vez de cair do muro alto.


Ainda hoje procuro ver as pregas do avental
no intento obscuro de perceber de onde saíam
penas, fios, canas e até a broa esfarelada

com que prendia pelo bico os animais alados.


Vejo-a agora afagando a ave no colo do avental
vendo que roubava verdadeiras penas para asas
do anjinho da família para a procissão

e esse anjinho só voava ao colo da imaginação

o avesso do direito

1.
Onde guardas o que ouves? Não pode ser na cabeça, que a cabeça não chega para tanto. Quando te pergunto o que me ouviste dizer-te um dia qualquer do passado, tu recitas palavra a palavra o que eu te disse. Ou assim me parece.
Ou guardas realmente o que eu disse em todos os dias da nossa vida e lês a memória das coisas que dissemos ou inventas o que eu podia ter dito e eu, falho de memória, aceito como muito plausíveis aquelas frases adequadas à circunstância e ao dia que, sem lembranças, rememoro por intermédio da tua memória ou da tua imaginação.
De qualquer modo, não podes guardar tudo na tua cabeça. Memória gravada ou ferramentas da imaginação de memórias não cabem. Ainda pensei que usavas uma competência qualquer para guardar a informação rarefeita e para a reorganizar instantaneamente sempre que dela precisavas, mas isso também ocuparia espaço que não sobra na tua pequena cabeça.

2.
Onde guardas o que sentes? Há quem pense que guardas no teu coração o que sentes, mas o teu coração não é mais que um músculo para cumprir rotinas de músculo - sístole e diástole - e alimentar em todos os sentidos a canalização do saco de sangue que tu és. Há quem pense que guardas as emoções dentro do teu peito, mas eu acho que não cabem no teu peito os disfarces para as alegrias e tristezas e para as dores que se derramam da nascente do pensamento que é exterior a tudo o que sejas tu.
Umas vezes estás cheio de alegria e não cabes em ti de contente.
E já te vi suar indignação na voz e a rebentar de fúria. Vi que as emoções que experimentaste não cabem em ti e vivem num lugar longínquo e inacessível. Há uma lista rabiscada que se enrodilha no bolso dos segredos.

3.
As tuas ilusões acordaram cansadas e nem tens força para juntar a voz da tua mão ao silêncio. E não podes senão escrever o silêncio de tempestade por te sentires obrigado a ouvir vociferar dirigentes de faca na liga e de federação do interesse privado em negócios milionários que viram interesse público e viram do avesso o estado de direito.
Já é mau saberes que existem. Horrível é saber que eles estão em toda a parte e até dizem o que pensam.

4.
Onde guardas o que calas? Para onde vais, quando o ar é irrespirável? Fechas os ouvidos ao que precisas de ouvir para não ouvir a boçalidade criminosa? Um vendaval de silêncio dissolve no oco as palavras que ouviste e não podes devolver.

[o aveiro; 7/9/2006]

pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui