os pés de barro

Quantas vezes passaste as mãos calejadas pelo rugoso tronco na esperança de veres o tempo recuar? Quantas vezes sentiste ou imaginaste sentir no cavado da tua mão de escultor o cabo do canivete? Olhas a lâmina escondida, por breves instantes faiscando ao sol, com que cavas a tua jura de amor na velha casca da árvore. Sentado na balaustrada norte do jardim, com uma indiferença sobressaltada, disfarças os gestos meticulosos com que talhas o nome dela.
Lembras-te de cada sobressalto, do medo de seres descoberto pelos guardas do jardim ou por quem por ti passasse ou por algum colega que, se adivinhasse, não deixaria de troçar de ti, cantando o nome dela. Lembras-te de tudo. E não podes encontrar vestígios desse gesto.
Sentes a marca que fizeste, como sentirias uma mão depois de ter sido amputada. Sabes que não está lá, que não sobram vestígios desse baixo-relevo insensato e, talvez por isso, vejas agora mais nitidamente que antes o nome talhado e ainda impossível de nomear.
Tu sabes que ela nunca soube que o nome dela cavou o teu peito tão fundo quão fundo foi o teu desespero ao nomeá-la na velha árvore do extremo do jardim onde esperavas a camioneta para voltar à aldeia, ao fim da tarde, depois das aulas. Ninguém pode calcular a ternura que esta memória carrega, porque ninguém tem balança que pese paixão que nem ousou levantar os olhos e nem foi reconhecida para não ser rejeitada. Vivida por uma solidão maior, fez-se maior paixão, sem sim e sem não, e ... sem compaixão. Nunca foi além desse gesto de esperança na eternidade do nome em casca daquela árvore e abrigo.
Passavas pela tua árvore e imaginavas que ela ali estava, tão perto da entrada do parque e tão escondida pelo pequeno café-bar. De vez em quando, fotografavas a árvore como ias fotografando outras. Era isso o que dizias a ti mesmo, sabendo que ela era uma irrepetível escultura do tempo... e tua. Como vais aceitar que a tenham encontrado seca e enrugada, indefesa como tu, e tenham decidido ceifá-la? Tinhas-te convencido que ela não incomodava ali atrás do pequeno café e era, como era para ti, a mais bela árvore de torturados ramos.
Sempre soubeste que uma parte de ti ali ficara. Passados quase cinquenta anos, incapaz de perdoar a quem matou o sonho, não podes fazer mais do que tirar mais uma fotografia e passar a tua mão pela ferida vegetal, cheirar a serradura e olhar as tuas unhas que se quebraram a arranhar a eternidade.


[o aveiro;5/5/2005]

a escultura

como um pato