desenhos de évora




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Pormenorçamento

Todos ficamos envolvidos nas discussões sobre um orçamento de estado quando este desce do do governo ao parlamento com vista a receber o voto do partido do governo e a condenação dos restantes partidos.

No fundamental, o orçamento do Partido Socialista é o orçamento dos partidos à direita e estes, garantido que está o seu orçamento, podem votar contra para afirmar-se como ainda mais radicais defensores dos interesses do grande capital e não desdenhando um ainda maior ataque aos papeis que cabem ao estado social moderno. Aliás, o melhor para os partidos da direita será ver o estado social exaurido e atacado por quem se reclame de esquerda.

Para cada ideia de sociedade e de estado, até mesmo para cada classe social ou para cada grande grupo de interesses, há um orçamento. Há muitos orçamentos na discussão de cada orçamento de estado. Para a esquerda, o orçamento baseado nas grandes obras públicas e no aprofundamento de todos as vias que conduziram o estado e o país até este buraco não pode ser aprovado. O orçamento do PS não aposta nas pessoas, na sua qualificação e no que sejam competências humanas em acção. Aposta antes em actos inaugurais de uma nova era de grandes obras e eventos para movimentar capitais no sentido do costume, do estado para os do costume, continuando a aprofundar o abismo entre os mais ricos e os mais pobres.

Este é o orçamento que nos permite sair da crise? - é a pergunta destes dias. Não sabemos responder. Para quem nunca esteve em crise, banca entre outros, o orçamento do PS ainda lhes garante mais umas coroas... e de louro, por terem visto subir os seus lucros aproveitando o presente da crise dos outros. Para o estado social, o orçamento vem dizer que a sua crise deve ser aprofundada. Os pobres e desfavorecidos, desempregados, etc irão ver as suas condições de vida prejudicadas porque é sobre a sua pobreza que um futuro radioso vai ser construído. Para esses, o orçamento vem aprofundar-lhes a crise do presente em nome de um futuro que lhes escapa.

Ao ler o orçamento, assalta-me uma curiosa comichão com o cuidado extremo posto nos artigos que se referem à Caixa Geral de Aposentações, com cuidadosas notas sobre inscrições dos titulares de cargos dirigentes. Quem fica a dever à Caixa? Certamente que não são os que descontaram toda a sua longa e normal vida activa e carreira retributiva! Finda a resistência ao cerco, imaginemos como vai ser o saque.

[o aveiro; 17/11/2005]

ensina-me a chorar

Ensina-me a chorar que eu bem preciso,
nem imaginas quanto, de lágrimas verdadeiras.

Deixa-me mergulhar em tuas mãos lavadeiras
e entranha-me do cheiro das tuas faltas de siso .

ciência prática

No último mês, convivemos mais uma vez com a estupidez boçal dos mandantes das praxes estudantis. Sei que faltaram às aulas, sei que houve quem fosse obrigado a faltar a aulas, sei que há quem ache tudo isso normal e até desculpe as faltas às aulas, sei que se embebedaram repetidamente, sei que houve festas "de acolhimento" que duraram noites inteiras de uma semana, sei que houve mesmo quem achasse intrigante a insatisfação dos vizinhos das festas. Vi os bandos pelas ruas da cidade e também vi a manada em frente da Reitoria. Não me conformo com o regresso das trevas.
E, a respeito das praxes, ouvi (e li n'O Público de 7/11 ) o Ministro da Ciência afirmar que as escolas do ensino superior "não devem ser escolas de submissão e de iniciação a práticas fascistas" e que é "absolutamente contra aquilo que se designa, com algum humor sádico e machista, por praxes académicas, como se nos devêssemos rir disso". Acrescentava que essas praxes "são uma escola de falta de democracia e fascismo" e que "devia haver uma atitude de menos complacência por parte de todos, nas universidades e fora delas".
Sabemos bem como a Universidade tolera a actividade das hordas praxistas. E é intolerável essa atitude que acaba por legitimar a um certo nível as palhaçadas que, por vezes, acabam em verdadeiros crimes (sem culpados?). Afirmou o Ministro que é preciso "aplicar a lei e exigir o seu cumprimento dentro das universidades", que não se podem aceitar assédio e humilhações em sítio algum e que "não há paraísos para a humilhação ou para práticas fascistas" e que, se os houver, "esses paraísos não podem estar dentro do ensino superior". Mariano Gago afiança que irá tomar "o máximo de medidas que seja possível" e pede "que aqueles que sejam vítimas se queixem", pois ""se o não fizerem estarão a ser cúmplices dessa barbaridade".
Somos solidários com a revolta do Ministro e com as vítimas. Sem aceitar que haja patrocinadores para esta vida selvagem nem a cumplicidade das autoridades das academias e das cidades, tenho de lamentar que, para falar disto, seja preciso haver novas vítimas capazes da denúncia.
Não são públicas e notórias estas demonstrações dos velhíssimos veteranos da parvoíce juvenil? Um dia ainda vamos ser espantados pelo espancamento dos veteranos às mãos de jovens cansados de tanta humilhação e cansados do estado descansado.

[o aveiro; 10/11/2005]

mel

Esta manhã meu irmão procurava
qualquer coisa nas gavetas; remexeu
no armário, nos bolsos dos casacos,
dos capotes e de cabeça e mãos
na cómoda tirou tudo para fora.
Virou do avesso até a cozinha.
Passava de um quarto para outro
sem me ligar.
Quando começou a revistar a minha cama
perguntei-lhe: que procuras?
Não sei. Primeiro procurava um prego,
a seguir um botão, depois queria fazer café
e agora preciso que me digas alguma coisa,
nem que seja uma tolice.


[cantèda vintitrè; mel;
tonino guerra, mário rui oliveira]

prova de vida

De vez em quando, vejo o mundo aperfeiçoar-se. São pequenas coisas, fragilíssimos gestos os que me reconciliam com a vida e me lembram a exacta medida das humanas falhas.

Fiz parte de um pequeno grupo que concebeu e discutiu com professores os programas de matemática. Há poucos processos que tenham merecido tantos debates como esse. Anos passados nesse trabalho e de reflexão sobre ele, podemos ver-nos reflectidos em parte nas opiniões que se fizeram ouvir, ver estabelecidas novas formas democráticas de autoria e autoridade.
Apesar da qualidade da discussão, reconhecemos que poucas vezes sentimos a necessidade do debate fora das multidões que aderem tecnicamente aos argumentos a favor e contra as decisões programáticas. Na falta de melhor participação cidadã, comparamos com o que foi antes de nós e aceitamos as limitações como sendo coisa inevitável.
Convencidos sobre a fatalidade das limitações e munidos com a arrogância de quem não espera aprender em discussões sobre as adaptações do geral a este ou aquele subsistema específico, aceitámos adequar programas gerais de ensino ao ensino recorrente, ao ensino profissional ou à educação e formação. Nem nós, nem outro além de nós se lembrou de ouvir uma ou outra comunidade sobre quaisquer aspectos da nossa acção.
Essa acção influencia a vida toda de muitas pessoas em cada comunidade. Não estranhei que toda a decisão fosse feita longe de todas as ribaltas de discussão pública.

Nem imaginava que podia ser de outro modo, até que me convidaram para moderador e provocador de um debate sobre educação e formação na Murtosa. No Centro Recreativo Murtoense, na sequência de outros encontros e debates sobre variados assuntos em espaços associativos, vi-me cercado de pessoas com projecto, interessadas em levantar pontos de vista sobre o ensino e sobre a formação como quem levanta pesos e o mundo em ombros, capazes de acrescentar cor local, sabedoria e experiência ao saber de teoria feito.

Ao surpreender-se a si mesma em vida comunitária, a vida não pára de nos surpreender e, se encontra fresta aberta, cria um ensinamento maior que o anunciado no gesto de toca a reunir. Bolos e cafés, sala com história, pessoas com memória. E boas falas.




[o aveiro; 3/11/2005]