cruzes canhoto!

Tanto quanto posso lembrar-me da minha infância, a escola primária pública da minha aldeia tinha duas salas expressivamente separadas por muros. Numa das salas, as crianças ficavam de costas para a porta. Na outra, as crianças ficavam viradas para a porta. As grandes janelas, viradas a nascente, ficavam à esquerda das crianças . Sentados em carteiras alinhadas, os estudantes olhavam por vários anos para uma parede em que pontificava um quadro negro. Sobre este quadro negro, uma cruz. Craveiro Lopes ficava de um dos lados da cruz e Oliveira Salazar ficava do outro. Há muitos anos que me interrogo a respeito de algum deles poder ter sido um bom ladrão. [E lembro-me também de um ano em que entrava na igreja - essa outra escola aldeã da minha infância - e via na parede o contra-almirante Américo de DEUS Rodigues Thomaz a velar pela minha educação religiosa, adornado com faixas sobre a farda imaculada, nessa parte da igreja só para os homens eleitores. A maioria, feminina, ocupava a nave central e era poupada à ameaça da Armada.]

Nesse tempo, nem imaginava que houvesse crianças que não fossem católicas apostólicas e romanas. Aprendia então cuidadosamente que os infiéis ou tinham sido derrotados e assassinados ou tinham sido convertidos e já não eram infiéis.

Passados cinquenta anos, nem tudo é diferente. Mas olhamos para o passado de heranças culturais de outro modo e sabemos que há batalhas que se perderam na bruma dos tempos, mesmo quando parecia que as vitórias eram nossas, dos nossos cruzados e eternas.

Ainda nos parece que a maioria da população se reclama de uma matriz católica, mas sabemos e aceitamos que há portugueses de raiz ou visitas bem vindas das mais variadas religiões. E defendemos que, nas salas de visita da democracia portuguesa, todos quantos por cá vivem e trabalham se devem sentir iguais independentemente da raça, do credo, do sexo, .... As primeiras salas de visita são as salas de aula das escolas.

O mediterrâneo lembra-nos todos os dias de que caldo cultural somos feitos e a nossa língua não nos deixa esquecer a herança que recebemos. Por isso, desejamos ardentemente que as iniciativas das comunidades das margens do mediterrâneo tenham sucesso. O nosso futuro depende disso.

Onde falha a Cimeira Euro-Mediterrânica de Barcelona? Lá, claro. E por cá? Cavaco Silva, candidato à Presidência da República, declara-se contra a retirada dos crucifixos das escolas públicas do nosso estado laico. A derrota mediterrânica está a passar por aqui.

[o aveiro;1/12/2005]

A cobrança de pt-nadas.

Passavam os anos e eu mantinha dois números de telefone da rede fixa - um da pt e um outro ligado a outro serviço Para não mudar o número antigo, para não sei o quê. Até que um dia de Junho ou Julho, ao ver que pagava coisas espantosas, tirado dos meus afazeres, dirigi-me à pt que reclamava a presença do assinante que queria ser desligado da máquina.

E lá assinei uns papéis a desligar-me. Mantive o pagamento disponível no banco até porque haveria a pagar o que ainda estivesse por pagar. Pelo sim, pelo não, lá desliguei tudo e avisei que não havia ligação para o número antigo. Abençoados meses sem aquelas contas.

Um dia destes, fui assaltado. A factura da pt tinha voltado e, pelas datas, o banco já devia ter liquidado a coisa. Nela constavam o custo de uma assinatura mensal, o custo de um plano de preços e uma taxa municipal de direitos de passagem relativo ao mês de Outubro. Não havia mais cobrança porque não havia qualquer serviço prestado. Fiquei perplexo e fui perguntar o que se passava. Em particular, perguntava como era possível estar a pagar o que não tinha comprado nem tinha sido vendido. A funcionária simpática e eficiente explicou-me com paciência que, em Junho, eu só tinha suspendido o serviço por alguns meses e, como não tinha dito coisa alguma, o serviço tinha voltado a estar disponível automaticamente e eu tinha de pagar, utilizasse ou não. Mais uma vez amaldiçoei as minhas pressas a impedir-me de não ter percebido isso da outra vez. Lembro-me bem de ter insistido então para acabar com a coisa de uma vez por todas.

E vi-me a pedir, de novo, agora a esta funcionária, que me desligasse da máquina definitivamente. Preferia morrer sozinho a continuar vivo ligado à máquina da pt. Mais um papel para eu assinar! A razão "não quero!" não serviu para cortar o cordão umbilical com a pt. O computador não considerava essa possibilidade e eu tinha de justificar o fim destes pagamentos indevidos como se crime fosse, como se recusasse pagar imposto para serviço público.

Finalmente, entregaram-me o papel, com o aviso de que ainda teria de esperar e pagar mais uns sete dias úteis. Cansado, assinei no papel - "Burro Martins" - com a minha bonita caligrafia.

[o aveiro; 24/11/2005]

pregunta derradeira


dime,
camarada, como vén
e como ten ollos a morte
cando quedamos sós?

como esvara
deica o seu silencio atrapado
e nos prohibe?

como,
camarada,
deixar gravado na memoria
o teu tempo de escuma?



[Rafa Villar; son de poesía.
Lisboa e Santiago de Compostela]



a planta da assembleia




bordada na assembleia,
uma teia.

uma grua espreitava


Ali onde menos esperava erguia-se uma nuvem
ameaçadora como uma ferramenta cinzenta
ou uma guilhotina brilhante na nesga de luz.

Enquanto ruía um céu metálico de sabores e gruas
e roldanas, porcas, parafusos e foices de longas curvas,
fêmeas e machos voavam espreitando passos de roscas
acertando noivados, casamentos, amor eterno.

Uma grua galgava o abismo, de braços abertos,
aos ombros, equilibrava a cidade de cordas de aço
retesadas pelos músculos do medo.

E eu, onde menos me esperava, aparecia a espreitar-te
como uma grua pesada se reconstruindo peça a peça.

dia de outono


Senhor: é tempo. O Verão foi muito longo.
Lança a tua sombra sobre os relógios de sol
e solta os ventos sobre as campinas.
Manda que os últimos frutos se arredondem,
dá-lhes inda dois dias mais meridionais,
leva-os à perfeição e faze entrar
a última doçura no vinho pesado.

Quem agora não tem casa, já não vai construí-la.
Quem agora está só, longo tempo o será.
Fará vigílias, e lerá, escreverá longas cartas
e vagueará, de cá para lá, nas alamedas,
agitado, quando o vento arrasta as folhas


[ Rilke; o livro das imagens; 1902 (P. Quintela)]

esquecimento



Como sombras em volta assim quero ver as pessoas dos dias que me reconhecem,
esquecer os pormenores de todos os rostos, de todos os braços, de todos os olhos

para perceber cada detalhe dos teus sorrisos magoados pelas minhas faltas medrosas
ou pelas presenças que são mais veladas ausências ou oscilações de desordem interior

projectadas como sombras no paredão de que me afasto até aos dezassete passos
de olhos vendados e gritar fogo! para o pelotão que anseia fuzilar-me por descuido.


Espero ser salvo do torpor da ferrugem, dobrar uma esquina corroída em salmoira.

pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui