alberto ao domingo





triste

levanto-me cedo para varrer uma tela com o pincel
como se tomasse uma vassoura e varresse o chão
maquinalmente
sem querer varrer pó a não ser para o ver sem ver
num voo que sabemos mas não vemos.

levanto-me cedo para tentar perceber o que quero fazer
entre actos ditados por outros e pelas promessas
e fico ali preso o tempo todo da eternidade da manhã
a pensar que já nada há que seja meu a não ser
o gesto maquinal de varrer coisa nenhuma para dentro.

o engano da curva

Eu vinha tão distraído que nem a vi.

Depois de a ver, todos pensam que eu minto
e que morri por a ter visto.

Assim pensaria eu, agora que a vi, se não fosse tão distraído.

molti zero

Senza voce l'insegnante si alza davanti a una classe
di pallidi bambini dalle labbra serrate.
La lavagna alle sue spalle tanto nera quanto il cielo
che dista anni luce dalla terra.

È il silenzio che l'insegnante ama,
il gusto dell'infinito che trattiene.
Le stelle come le impronte di denti sulle matite
dei bambini.
Ascoltatelo, dice felice.


Charles Simic; DIECI POESIE;
Traduzione di Andrea Molesini

Passo d'addio


Si ripiegano i bianchi abiti estivi
e tu discendi sulla meridiana,
dolce Ottobre, e sui nidi.

Trema l'ultimo canto nelle altane
dove solo era l'ombra ed ombra il sole,
tra gli affanni sopiti.

E mentre indugia tiepida la rosa
l'amara bacca già stilla il sapore
dei sorridenti addii.


[Cristina Campo]

O retrato.

No dia 5 de Dezembro passado, se fosse vivo, Ruy Luís Gomes faria 100 anos. Muita gente se lembrará de Ruy Luís Gomes como candidato à Presidência da República, oposicionista do regime fascista, que viveu muitos anos exilado na Argentina e no Brasil e, tendo regressado com o 25 de Abril, ainda foi reitor da Universidade do Porto. Outros saberão que foi um matemático e cientista de renome, citado por grandes nomes da ciência fora de fronteiras. Para os matemáticos portugueses, ele permanece como um importante pólo organizador de instrumentos colectivos para o estudo e investigação, divulgador de teorias matemáticas e físicas e reconhecem os seus rastos de organizador e cientista nas universidades e lugares por onde passou no estrangeiro. Todos nos interrogamos como teria sido diferente (só para a matemática?) se aquela geração de matemáticos não tivesse sido obrigada a partir.

Numa semana de entrevistas e debates, o que mais me interessou foi este debate travado com o nosso passado enquanto olhámos para a vida de Ruy Luís Gomes. Pacheco Pereira debateu o homem numa totalidade de significados dos compromissos políticos que Ruy Luís Gomes assumiu, sobre os quais operámos a separação de alguns momentos da sua saga para o transformar em herói da nossa vida. Manuel Arala Chaves questionou o matemático amigo mais velho e o político e foi-nos dando as respostas de Ruy Luís Gomes em cada tempo, escritas por suas mãos em postais de circunstância ou nas publicações que acolheram os seus gestos e a sua voz. Assistimos à exaltação da admiração da testemunha perante a personagem, ao espanto face a atitudes e actos, à determinação em tudo tentar compreender para encaixar na personagem que passou pela sua vida desde a adolescência na década de 50 até aos anos 80 do século passado.

O que mais me interessou nestes debate e entrevista a Ruy Luís Gomes, na passagem dos 100 anos sobre o seu nascimento, foi o retoque de humanidade que Manuel Arala Chaves e Pacheco Pereira acrescentaram ao retrato que dele tínhamos. Fragilidades e rugas não diminuem Ruy Luís Gomes, antes o suavizam e nos devolvem um retrato colorido para substituir o velho retrato a preto e branco ou sépia que arrumáramos na nossa memória.

Enquanto nos fazia a revelação de uma fotografia de Ruy Luís Gomes, Manuel Arala Chaves revelava-se. Isso mesmo. Com a sua fala sobre o outro, é o seu próprio retrato que o retratista nos deixa afinal. Desenhado no ar. Instantâneo, porque a vida pode ser um instante.


Nota: Eu só espero que as gentes de Aveiro mereçam o museu vivo de Matemática - Atractor - que, pela vontade de Arala Chaves, há-de ter casa em Ovar. E possam saber desde já dele pela Matemática que está no Pavilhão do Conhecimento no Parque das Nações e pelas exposições que correm pelo país atrás das pessoas (com pressa de chegar não sabemos aonde).

Ruy Luis Gomes

Em 1976 ou 1977(?), participei na organização de acções de protesto contra a ditadura brasileira por alturas do assassinato de vários dirigentes do Partido Comunista do Brasil. Lembro-me dos nomes de Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Drumond. Marquei o primeiro encontro com Ruy Luis Gomes para lhe pedir que assinasse o nosso protesto contra a tortura e o assassinato. Recebeu sem complicações na sua casa (ao Pinheiro Manso) o então jovem professor radical que eu era. E recordo-me da simplicidade primordial de um espírito superior que, desde então até hoje, é fonte do meu optimismo humanista.

Encontrei-o ainda uma ou outra vez nas reuniões em que reerguemos a Sociedade Portuguesa de Matemática, no norte.

Sempre tive dificuldades em relacionar-me com pessoas importantes e mais ainda quando, como acontecia com Ruy Luís Gomes, elas faziam parte da galeria dos nossos maiores, dos mitos. À distância, como sempre e ainda hoje, tenho de reconhecer que sou devedor de Ruy Luis Gomes. Só isso! Neste 5 de Dezembro, quando passam 100 anos sobre o seu nascimento aqui fica reconhecida essa dívida,... que se vai pagando no dia a dia da vida.

coberta que fosse

Coberta que fosse
de aves, ficava
num longo dizer

a rapariga. Havia misturado
um perfume a erva brava
e a canela. Nem sei

por que me lembro
do que já queima
os lábios, agora que se dobra

o coração no frio.



[José Carlos Soares; terra de chá, son de poesía]

os dias da semana




inferência, zoo e gavetas.

os dias da semana




na manhã de sábado, o desenho

restauro da pátria

olho para o mais fundo das casas
para os ácaros que vivem no teu cotão

sorvo o ar na imaginação das asas
dos vespeiros que vivem no teu sótão

e restauro-me a olhar-te e respirar-te
sem pensar-te ou acrescentar-te arte
à tua arte.

pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui