eu vi como

Eu via como a minha avó puxava de dentro do avental
o lenço encardido e limpava a lágrima amarela
de qualquer criança arreliada por não voar

em vez de cair do muro alto.


Ainda hoje procuro ver as pregas do avental
no intento obscuro de perceber de onde saíam
penas, fios, canas e até a broa esfarelada

com que prendia pelo bico os animais alados.


Vejo-a agora afagando a ave no colo do avental
vendo que roubava verdadeiras penas para asas
do anjinho da família para a procissão

e esse anjinho só voava ao colo da imaginação

o avesso do direito

1.
Onde guardas o que ouves? Não pode ser na cabeça, que a cabeça não chega para tanto. Quando te pergunto o que me ouviste dizer-te um dia qualquer do passado, tu recitas palavra a palavra o que eu te disse. Ou assim me parece.
Ou guardas realmente o que eu disse em todos os dias da nossa vida e lês a memória das coisas que dissemos ou inventas o que eu podia ter dito e eu, falho de memória, aceito como muito plausíveis aquelas frases adequadas à circunstância e ao dia que, sem lembranças, rememoro por intermédio da tua memória ou da tua imaginação.
De qualquer modo, não podes guardar tudo na tua cabeça. Memória gravada ou ferramentas da imaginação de memórias não cabem. Ainda pensei que usavas uma competência qualquer para guardar a informação rarefeita e para a reorganizar instantaneamente sempre que dela precisavas, mas isso também ocuparia espaço que não sobra na tua pequena cabeça.

2.
Onde guardas o que sentes? Há quem pense que guardas no teu coração o que sentes, mas o teu coração não é mais que um músculo para cumprir rotinas de músculo - sístole e diástole - e alimentar em todos os sentidos a canalização do saco de sangue que tu és. Há quem pense que guardas as emoções dentro do teu peito, mas eu acho que não cabem no teu peito os disfarces para as alegrias e tristezas e para as dores que se derramam da nascente do pensamento que é exterior a tudo o que sejas tu.
Umas vezes estás cheio de alegria e não cabes em ti de contente.
E já te vi suar indignação na voz e a rebentar de fúria. Vi que as emoções que experimentaste não cabem em ti e vivem num lugar longínquo e inacessível. Há uma lista rabiscada que se enrodilha no bolso dos segredos.

3.
As tuas ilusões acordaram cansadas e nem tens força para juntar a voz da tua mão ao silêncio. E não podes senão escrever o silêncio de tempestade por te sentires obrigado a ouvir vociferar dirigentes de faca na liga e de federação do interesse privado em negócios milionários que viram interesse público e viram do avesso o estado de direito.
Já é mau saberes que existem. Horrível é saber que eles estão em toda a parte e até dizem o que pensam.

4.
Onde guardas o que calas? Para onde vais, quando o ar é irrespirável? Fechas os ouvidos ao que precisas de ouvir para não ouvir a boçalidade criminosa? Um vendaval de silêncio dissolve no oco as palavras que ouviste e não podes devolver.

[o aveiro; 7/9/2006]

Aqui me apresento como fui

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