chá

lá fora, a vida

Ouço os gritos lá fora. Não sei de onde, eles chegam até mim voando. Alguns são guinchos entre palavras de ordem. Percebo que os guinchos e os grunhidos fazem parte da integração na universidade, são o santo e a senha ou o código que abre a porta da horda. Está tudo como dantes. No meu tempo de estudante, assim eu levantasse a voz tímida contra qualquer dos poderes estabelecidos, as forças da ordem apareciam para me calar como quem esmaga uma voz. No meu tempo de estudante, havia estudantes que gritavam obscenidades e bebedeiras pelas ruas e as forças da ordem apareciam para os aplaudir, porque a ordem então imposta era a obscenidade de um regime fascista. Continuo sem compreender como é que esta ordem democrática aceita as agressões ao vento que passa de uma turba que se dá ao luxo de gastar semanas e semanas de aulas e trabalho a impedir os novos estudantes de começar a estudar. Os governos do país e das universidades riscam estas semanas do calendário; até parece que quando marcam o início das actividades estão a marcar o início destas actividades performativas que enchem ruas da cidade de jovens pintados, borrados, encharcados e manchados, a marchar ao ritmo marcado por estupidantes e depois, educados para boas maneiras ao chá, para a boçalidade e para a classificação rasca que o rendimento escolar lhes atribui, ao tempo em que prende a realidade, a mesma na mesma, e, como sempre mergulhada no mar dos discursos dos piores do costume a clamar por melhores dias. Fingem mesmo que as actividades performativas degradantes são boas e não perigosas, fingindo acreditar que os meninos só usam produtos antialérgicos, que os humilhados até gostam de ser humilhados quando se defendem não atacando, que as agressões psicológicas não deixam marcas físicas. Eles são doidos. Eles são doidos. E só acordam para a parvoíce quando alguma bebedeira corre mal ou quando o terrorismo faz vítimas que não cabem no armário do costume e do esquecimento. Começo a seguir a teoria da conspiração: o poder político e económico, com seu material genético a dar provas de incapacidade e estupidez criminosas, deixa a coisa andar por estas veredas para que tudo se reproduza da forma mais conveniente e as suas crias, ainda não geneticamente melhoradas, não tenham de enfrentar a concorrência de uma inteligência popular qualquer que se levantasse para os pegar de cernelha, pelas orelhas, pelos cornos, pelo norte magnético. Se eles podem permitir estes luxos asiáticos aos estudantes subsidiados para isso mesmo, ao mesmo tempo que reclamam resultados do sistema educativo, eu posso acreditar numa conspiração, qualquer que ela seja. Eles são doidos! Que me perdoem os doidos verdadeiros que, num acesso de lucidez, fugiram deste filme e berram ainda mais alto para não ouvir o eco disparado para as nuvens. Nestes dias, falha-me a paciência mesmo para o tempo que voa: agarro-o pelo pescoço e sopro com toda a força até que este rebente e se estilhace no ar. Eu quero ouvir a chuva grossa lá fora, um chão que abafe os passos destes batalhões incapazes que brincam como quem dá provas de vida ao sistema (tão tímido a fazer saber que a vida é outra coisa e outro lugar) para que este as subsidie nem que para isso corte nos subsídios à vida produtiva. Todos somos cúmplices deste intervalo oco. Por ser oco? Por não ser oco.
Ouço os gritos lá fora.

[o aveiro; 12/10/2006]

a alma

se não existir a alma, tenho de inventar-lhe
um molde

uma forma que lhe dou
é a do pesadelo que se casa

com o meu coração destroçado

a gota de mágoa

Fulano partia todos os dias, manhã cedo,
para um trabalho a tempo inteiro

e só à terça lhe sobrava uma hora
para fazer o que estou a escrever agora.

Ao domingo comia com o vidro do tinteiro
o rio de tinta por onde no barco, que metia medo
em vez de água,
havia de remar a partir de segunda

desde a foz até à gota de mágoa
uma demanda fecunda

da nascente

da indústria pesada

A última semana de alguns é a primeira semana de outros, sendo que uns e outros podem ser os mesmos enquanto afirmam a diferença que farão no futuro relativamente ao que foram no passado próximo. Para muitos estas diferenças têm sido negativas ou dão resultado negativo, porque os da primeira semana de futuro têm uma última semana de passadão e de passivo.
Os noticiários alertaram-me para a novidade do novo dirigente da indústria não vir de qualquer clube de industriais. Em nenhum pormenor do cenário da cerimónia transmitida em directo consegui vislumbrar razões para o alerta. Aliás, todos os figurões e até os figurantes pareceram-me caras conhecidas do mesmo clube. Percebo pouco de indústria, mas tenho de confessar que me senti a assistir a uma celebração do clube central do país. De que clube falavam os comentadores? Ainda estou para descobrir.
No discurso, muitas frases do ex-secretário presidente começavam por "Comigo,..." para parecerem ora uma ameaça ao porvir ora uma promessa de diferença relativamente ao passado ali omnipresente e, diga-se, omnipotente e omnipatente de major para cima. Queria ele dizer-nos que nunca tinha estado naquele mundo e eu sem ter imaginação que chegue para o ver fora daquele mundo. E gostei de o ver ex-secretário a falar ao secretário do respeito sagrado que a indústria pede e merece e de como exigirá isto, aquilo e transparência nos números das relações da indústria com o estado das secretárias polidas até à transparência. Como terá sido ao tempo em que foi secretário o ex-secretário do estado a que isto chegou? Não tenho memória. Sei que foi transparente até passar de secretário de estado a estado maior da indústria. E dou graças a deus por não ter estado presente quando se mostraram transparentes (e certamente medonhos).
O mais medonho foi quando, sem passar procuração, o ex-secretário começou a transferir as nódoas dos fatos dos industriais da sua liga de metais raros para as togas das justiças interna e externa à indústria. É uma piada bem portuguesa.
Com mais um peso pesado na direcção da indústria, Aveiro arrisca-se a precisar de tratamento... por excesso de peso político.

[o aveiro;5/10/2006]

verdura

de Arsélio Martins, mesmo quando não parece .