ouro sobre ouro sobre azul

Vivemos um tempo de comemorações. Para exemplo, tomemos as bodas de prata da Comunidade europeia e as bodas de ouro da RTP.

Recentemente, dei por mim fascinado com um passeio marcial de poderosos numa daquelas praças desertas que se abre para um arco de triunfo berlinense. Ouvi os tacões picando o chão até que um eco ficou a pairar no ar enquanto os poderosos se perfilavam em duas filas para a fotografia oficial das bodas de prata. Como se a Comunidade fosse uma “passerelle” onde desfilam modelos de poderes públicos, em vez de uma casa habitada pelas pessoas dos defeitos vulgares.

Na Rádio Televisão Pública, tal como em qualquer outra Rádio Televisão Privada, falaram das bodas de prata da Comunidade e mostraram os passeios marciais e as fotografias oficiais. Alguns entrevistadores perguntaram sobre a Europa para que entrevíssemos algum ar europeu. Pouca coisa, pouca prata. A RTP foi um portador sovina em mensagens sobre a prata comemorativa da comunidade. Daí resulta um empobrecimento na importância do acontecimento da prata europeia.

Inversamente ao desdestaque atribuído à realidade europeia pela RTP, esta andou mergulhada na criação de múltiplos eventos e programas comemorativos das suas próprias bodas de ouro. A RTP destacou todo o esplendor dos seus 50 anos de vida. Tratou de coleccionar as fotografias de toda a sua vida para as mostrar. Desde o preto e branco até às cores todas de hoje. Sem distinguir a realidade da televisão de antes e depois do 25 de Abril, mostrando as notícias e imagens consentidas pelo regime fascista como se não tivesse havido censura, mostrando a grande família da RTP como se a RTP de hoje fosse a RTP de ontem, modelos culturais sucedendo-se como se o molde fosse o tempo que passa e o regime salazarento não tivesse sido molde para coisa alguma.Vimos sucederem-se os diversos tempos louvando-se e beijocando-se mutuamente.

Chegámos ao espectáculo deprimente do festival rtp da canção deste ano que podia ter sido, a menos do detalhe da cor e da coreografia, o primeiro festival da rtp em que rezámos de tal modo mal que fomos abandonados por Deus desde então. Os dentes de ouro da RTP brilharam em todo o seu esplendor.

E, finalmente, este ambiente podre desembocou no último acto designado como “o diz que é uma espécie de benção ou de eleição” do benzido por um cardeal e eleito de deus.

O ouro que brilha esconde e cega as falhas, as rupturas - por exemplo, a democracia portuguesa e a comunidade europeia.

[o aveiro; 29/03/2007]

A RTP teve as suas bodas de ouro ao mesmo tempo que a Comunidade Europeia? O Portugal salazarento não queria ser uma democracia europeia e é por isso que escrevo sobre as bodas de ouro da rtp e as bodas de prata (ianda futuras) aproximadas e já diminuídas da Europa com Portugal dentro. O ano de ouro é só o da rtp.

a pontaria dos cegos

Não dei pela passagem do tempo? Ou não dei pelo tempo que passou? Ou foram os acontecimentos que se repetiram em tempos diferentes para parecerem um só num só tempo? Já não são as pessoas que se acotovelam. Não podemos deixar de ver que são os acontecimentos que se acotovelam uns aos outros. É estranho ver os acontecimentos a ser as pessoas em vez delas e a ocupar o lugar do tempo.

Há pessoas que aceitaram existir como personagens ou figurantes de acontecimentos previstos para ser a sua existência. Fora desses acontecimentos filmados para serem reais, tais pessoas não existem. Podemos imaginar que há um tempo de vida fora das câmaras, mas todo dedicado à preparação das cenas, aos costureiros, ao cabeleireiro ou peruqueiro, à maquilhagem e ao aquecimento dos músculos ou das próteses e das cordas vocais. Não há pessoas arrebatadoras, há acontecimentos arrebatadores.

Ainda não estava recuperado do arrebatador recomeço independente com uma cerimónia presidida por um reitor quando o vi a ser interditado por um tribunal do comércio cuja sentença foi executada por um ex-vice-verde-reitor acompanhado de advogados e seguranças para ser reposto em seu poiso com apoio da polícia para ser de novo retirado daquela cena já não sei por quem mas com certeza por razões puramente comerciais e substituído por um conselho de reitores. Se ouviram e viram aquelas personagens têm de concordar que elas não parecem particularmente interessantes em si mesmas, mas os acontecimentos urdidos são arrebatadores, comercialmente falando. E aterradores, se nos lembrarmos que tudo se passa numa unidiversidade.

Paulo Portas passa os dedos pela testa. Mostra com gestos firmes como controla a melena. Enquanto nos olha de frente com olhos bem abertos e riso mais branco que franco, domina o partido do passado no tempo presente, tomando a via directa pela direita. Insensível à informalidade do colarinho de portas abertas, uma mulher decide abusar do seu poder formal momentâneo para afirmar a formalidade do respeito pelos estatutos como condição da democracia partidária e nela inscrita para emperrar portas à entrada dos penetras - ora invasivos, ontem evasivos. Ficamos a ver como uma reunião pode ser arrebatadora. Viram que não há pessoas envolvidas, mas só figurantes e figurões para uma peça sobre a receita de poder instantâneo, filmada numa cozinha de um partido com dote.

Quando o alvo fala, nem o cego falha.


[o aveiro; 22/03/2007]

verdura

de Arsélio Martins, mesmo quando não parece .