reunião

os gestos mais simples

se um dia quis passear com uma mulher de mãos dadas
não fui quem digo que sou porque fiquei morto por amor
e não o soube fazer ou não tirei as mãos dos bolsos do medo


se um dia quiser tocar o céu da boca da mulher e a nuvem
da humidade do hálito do desejo tolher a minha língua é para sempre
e sempre é uma vida toda longa para ficar assim mudo e quedo

se um dia tocar a ponta do teu nariz com a ponta do meu dedo
e ele riscar o vento como um giz que escreve no quadro
a cor do ar e com ela o teu nome então volto a ser quem sou

para que possas partir sem olhar para trás sem olhar
para a porta da casa para a porta do sonho para a porta
onde se escondem os meus olhos à espreita do andar que se afasta

enquanto me afasto mãos dadas atrás nas minhas costas

fazer o meu número

Em tempo de eleições na Madeira, Jardim abre uma clareira na floresta de enganos que o sistema democrático representativo pode ser. O espectáculo rasca do candidato Jardim é a verdade, parte da verdade, toda a verdade? Vale tudo para vencer eleições? O caso da Madeira é o modelo que todos seguem, fingindo cada um ser outro em tudo diferente do Jardim? Em cada voto, quantas caras há? A pose do recém-eleito presidente de todos os governos regionais da Madeira representa o quê?
Logo a seguir às eleições, passam-nos como boa uma ideia que separa o Jardim eleiçoeiro do outro presidente vencedor. Ainda ontem todos se maltratavam e hoje cumprimentam-se formalmente e felicitam o vencedor. Se ele é o que parece e o que dizem que é, porquê e para quê se deve felicitá-lo? Ele entende o que disse? Saberá ele o que representa o espectáculo que montou? Ele entende o que dele dizem? Eles entendem-se?
Espalha-se a ideia que tudo é permitido para ganhar votos e que não há mal em ganhar votos pelo disparate e pelo crime que se dispara boca fora. De tal modo assim é que, mal acaba o processo eleitoral, há comentadores e analistas prontos a desvalorizar como excesso “natural” de campanha qualquer ideia xenófoba, racista ou até ilegal que tenha sido debitada durante a campanha. Há mesmo quem afiance a insinceridade como uma boa característica dos candidatos.
As ideias radicais de direita que Sarkozy não se cansou de repetir durante as campanhas para a eleição de Presidente da República de França nada representam senão uma mentira inteligente para captar os votos que, a não ser assim, acabariam votos em LePen da Frente Nacional. Devemos ficar descansados já que Sarkozy não foi eleito pelas ideias que exprimiu, mas antes por aquelas que não chegou a exprimir. De certo modo, dizem-nos que o espectáculo eleitoral é um espectáculo e que as ideias de nada valem a não ser para serem sopradas quando servirem para ganhar um voto.
Já houve fraudes eleitorais e foi triste. Mas nada pode ser mais triste do que ouvir que só temos farsas eleitorais nos nossos sistemas democráticos. Ou não há nada mais alegre? Ou não há nada?

[o aveiro; 10/05/2007]

solavanco

Confesso que gritei sempre, antes e depois de Abril. Podia não saber muito bem o que gritava, só sei que antes de Abril de 1974 me sabia bem gritar o que era proibido: tremendo berro clandestino de um corpo pequenino. Crescia com o grito, crescia ainda mais quando o meu grito podia ser lançado da boca de uma multidão inquieta que me escondia durante a rajada do discurso urgente. Enquanto o eco da rajada do discurso procurava os ouvidos da multidão em festa, desaparecia no lugar onde sempre tinha estado para não ser visto nem achado por eles. Por eles, os outros, os que viviam no meu medo sem que eu os conhecesse, que me procuravam para me encontrar sem marcar encontro.
Depois do 25 de Abril, deixei que a alma gritasse descompassada e com tal intensidade que me sobrasse esperança de ser escutado pelo passado até que ele me adivinhasse, a voz que eu era no grito desfeito em fumo. Depois do 25 de Abril deixei-me ser quem eu era, sem culpa e sem medo.
Haverá alguma história por contar? Não, não há. A minha vida sempre viajou como hoje viaja ainda em segunda e distraída vai contando solavancos.

essa é que é essa

Finco os olhos no chão para seguir os passos dados nos dias entre o 25 de Abril e o 1º de Maio de 1974. A partir de certa altura, o movimento era tudo até ser voo. E eu não guardo memória do momento em que levantei os pés do chão e muito menos me lembro do tempo em que poisei o corpo para viver o seu cansaço. Deixei-me levar pela pura euforia e só sei que fui levado por rios de multidão, saltando da minha pacatez tímida até aos gestos insensatos de correr as ruas e as veias do meu país. Com receio de ser encontrado, antes mudava de passeio muito frequentemente. Depois deixava-me voar nos encontrões do movimento.

Muitas vezes, me pergunto porque é que fui por aqui e não fui por ali, porque é que fiz isto e não fiz aquilo. Deixei-me tentar pela resposta que me dizia que eu sabia o que fazer e o que queria e para onde ia. Mas, depois, dei por mim a procurar a verdade e a aceitar que nos caminhos que ia percorrendo encontrava os meus amigos e eles não deixavam de me ver. Porque afinal eu queria ser visto. Todos nós queremos ser vistos e achados, penso eu agora.

Não me parece um erro seguir uma margem da multidão, ser parte de um cordão humano que procura constituir-se em fronteira entre a maldade que não poupa a miséria e a miséria filha da maldade humana. Lembro-me dos olhos e de lágrimas de dor. Mas também me lembro dos olhos para me lembrar das lágrimas de alegria, lembro-me das bocas e dos punhos erguidos para me lembrar das palavras que antes não podia gritar. E estou sempre a lembrar-me dos meus amigos, muitos deles perdidos na distância onde se guardam todos aqueles que vivem connosco mesmo quando não lhes pomos a vista em cima há décadas, que vivem connosco porque fazem parte da nossa história simples, talvez sem o saberem. Talvez sem o saberem, eles fazem parte de um sonho que não morre embora se vá refazendo noutro sonho. Olho para esse passado e é como se visse um álbum de retratos. Há quem veja acontecimentos determinantes e dentro deles os seus protagonistas. Eu só consigo refazer a pura euforia com uma galeria de retratos que só importam a mim. Porque foram eles que se fizeram ao caminho comigo até eu continuar a ser o que podia ser - sem me obrigarem a ser outra coisa que não fosse o que podia ser.

Não havia tempo a perder, não perdemos tempo, nem nos perdemos no tempo. O que passámos para aqui chegar! Onde?

[o aveiro; 03/04/2007]

pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui