tisana 17

(...)

Era uma vez uma chave que vivia no bolso de um homem. Durante muito tempo desempenhou com honestidade o seu trabalho de abrir portas. Até que um dia descobriu que todo o seu trabalho tinha consistido sempre em abrir portas que já estavam abertas. Quando descobriu isso lançou-se corajosamente para fora do bolso. Caíu no chão. Ficou ali. Passa uma criança vê a chave e diz que coisa tão engraçada para fazer um carrinho.


(...)

Ana Hatherly.

a cara do caminho

quotada

Hoje, duas mulheres puderam ouvir as notícias do costume e ocupar a viagem do dia na conversa sobre a forma como são tratadas: trabalham mais e recebem menos, são mais habilitadas e são mais desempregadas, etc. À distância, para quem me quisesse ouvir, eu ia murmurando que as mulheres eram responsáveis pelo acidente do presente. Argumentava eu que, há várias gerações, elas estão em maioria em todo o sistema educativo e escolar e, por isso, têm sido elas a reproduzir o sistema de ideias desfavorável (ou não) à afirmação das mulheres. Se as mulheres estão em maioria absoluta nas escolas, porque é que há um grande número de homens que são dirigentes no sistema educativo? Se a gestão dos homens tem sido a desgraça que se sabe e em desfavor das mulheres, porque é que as mulheres não tomam as rédeas? Elas lá conversavam sobre o assunto enquanto eu lhes aquecia as orelhas com o meu feminismo. Mas, das duas, a que me parecia mais radical começou a discursar contra o sistema de quotas. Ela acha que as mulheres devem ser consideradas pelo que valem e em todos os lugares que ocupem seja claro que é pela competência demonstrada e não por serem mulheres. Estive quase para desistir. Mas não me contive. E lembrei-lhes que os homens mantêm o poder com um apertado sistema de quotas. Já tentaram ver se há homens da multidão do poder e da gestão a ocupar cargos por critérios de competência? Uma boa parte desses lugares são protegidos por um sistema de quotas rígido entre as diferentes tribos de tótós dos partidos do poder. Uma autêntica quotada. Nem concursos, nem provas dadas... Ou melhor com provas dadas... a denunciar a borrada da sua própria acção no poleiro que abandonam quando sobem para outro poleiro, a enriquecer enquanto arruinam o país, etc. De alguns dos espécimes protegidos pelo poder, só sabemos que parecem homens pela forma de andar. Mal os ouvimos falar, a opinião piora. Adquirem notoriedade pelo disparate, para logo depois fazerem o que eles chamam gestão de silêncios. Tornam-se discretos até passarem à fase madura em que definitivamente não falam ... porque estão em segredo de justiça. Ouvimos falar deles como suspeitos. Uma suspeita? Também.


[o aveiro; 31/05/2007]

da ponte

cara ou coroa

a noite

a noite

As políticas vão a exame? Nós também

Nenhum dos últimos governos ignorou a importância do ensino da matemática. Não se trata de mera propaganda política. É antes sinal do reconhecimento da necessidade de formação matemática de todos os cidadãos. Os governos têm sido obrigados pela opinião pública (o que quer que isso seja) a prestar contas, informar os resultados e prometer políticas para superar deficiências.



  1. A generalidade dos eleitores pouco reclama sobre a qualidade da formação e a natureza das aprendizagens e mede o desempenho estudantil por resultados das provas nacionais. Nos últimos anos, os governos que tentaram eliminar provas nacionais de português ou matemática esbarraram em oposições poderosas. Essa oposição é exterior às escolas básicas e secundárias e ao conjunto dos agentes educativos. Os governos e os agentes educativos sabem que não é possível obter resultados globalmente positivos em provas de aferição dos conhecimentos essenciais pré-definidos. Resultados positivos só pelo reconhecimento das aprendizagens que a primeira aferição validasse. Os exames nacionais esquecem as diferenças entre escolas e esquecem a diversidade de condições sociais dos jovens chamados a prestar provas, bem como esquecem a diversidade das interpretações e das práticas dos professores no cumprimento dos programas nacionais em contextos diferenciados.
    Pode estar a acontecer um acerto feito pela realização estável de exames, se estes estiverem a ser acompanhados de estudos detalhados sobre resultados consolidados e as respostas dadas ao longo de vários anos. Reconhecermos que os governos podem aplicar exames leva-nos a recomendar aos professores que mobilizem a favor do ensino todos os materiais publicados pelo GAVE para os diversos níveis de ensino. Para aumentar a compreensão dos problemas e exercícios que podem ser objecto de exame sem que possam ser enfrentados com êxito por rotinas, pela execução acrítica e pobre em compreensão dos conceitos e técnicas matemáticas.



  2. As iniciativas dos governos viradas para um ou outro aspecto do ensino da matemática, sejam elas adaptações curriculares, formação de professores, apetrechamento das escolas ou ampliação dos impactos dos resultados dos exames nacionais e testes internacionais, aumentam a pressão sobre as escolas e os professores no sentido do cumprimento de programas escolares. Tem força a ideia de que os professores tendem a abordar os conteúdos aque mais lhes agradam e se demorem em temas que consideram importantes. Sempre que as competências a desenvolver apareceram independentes de um corpo completo de conhecimentos, conceitos e técnicas, os professores têm tendência a empobrecer a variedade de conceitos leccionados. Sem exames nacionais, há áreas de conhecimentos básicos em matemática automaticamente prejudicadas. A existência de exames condiciona fortemente a acção dos professores que mantêm, ainda assim, uma separação artificial entre a sua acção e os resultados dos exames. As medidas dos governos na melhoria das condições das escolas tende a criar na opinião pública uma exigência maior sobre os resultados e pretendem passar a responsabilidades para o corpo dos professores, enquanto procuram separar a acção dos professores dos resultados de outras acções (ou inacções). Chegam a sugerir que os resultados dos exames são independentes das condições económicas, diferenças culturais e de escolarização das famílias.

    Iniciativa central, os planos de acção para a matemática escolar básica tornaram-se planos locais por adesão voluntária(?) de escolas espalhadas pelo país. Mais de um milhar de escolas aceitaram tomar iniciativas locais com vista à melhoria dos resultados a matemática. As escolas puderam escolher as oportunidades e os grupos de estudantes sobre os quais se comprometeram a intervir especialmente. Assim, esta iniciativa central constituiu-se numa grande variedade de aplicações locais - variedade de públicos, variedade em estratégias de intervenção, variedade na distribuição no tempo, etc - o que retira todo o sentido a que se considere que influencia qualquer melhoria dos resultados de exames ao fim do seu primeiro ano de aplicação. Cada escola deve responder pelos resultados da sua iniciativa local que, em muitos casos, pode ter sido intencionalmente dirigida a estudantes em início de um dos ciclos do ensino básico e que, obviamente, não estão a prestar provas ao fim do primeiro ano. Pode mesmo ter acontecido que esta primeira candidatura tenha correspondido mais a compromissos de gestão do que a compromissos dos professores sobre as suas práticas.






Nenhuma destas considerações pode iludir a necessidade de avaliar as intervenções locais pelos resultados obtidos. Não são os exames? Não são. Cada plano de escola deve responsabilizar os respectivos professores pelo compromisso que assumiram. Não se espera mais, mas isso é o mais importante. Até porque é sobre isso que, ao fim de cada ano e dos três anos de aplicação, estaremos a medir o impacto das iniciativas do governo.



[Educação & Matemática. APM. Agosto de 2007]

onde?


subi até aquele buraco na encosta escondido por não ter falado disso com ninguém.
e por lá me deixei ficar, dormente, até ter a certeza que ninguém dá pela minha falta e ninguém me procura
até me convencer que não vale a pena procurar migalha de pão no saco, restos em lata de atum, uma folha de papel. também é verdade que começava a custar-me fazer a ginástica de ir ao buraco ao lado para todas as necessidades. a minha descida pela noite começou logo após ter desabado uma tempestade de lágrimas sobre o papel que embrulhara o último quadradinho de chocolate.

A reunião, lá longe

Espero. E a vida suspende o seu voo. Ou esqueço as asas abertas. E que sejam as mãos do vento a decidir o que serei: instante a instante pairo sobre o futuro que serei. Espero.

Outra vida toda a vida.

“Quando dei por ela, já tudo aconteceu. Não sei quando começou, nem como e muito menos porquê. Como se às escondidas do tempo, um pequeno senão de coisa nenhuma tivesse aparecido não se sabe de onde e por ter tropeçado no pequeníssimo e desconhecido obstáculo tivesse desenrolado outra passadeira de descer escadas até aos altos céus. E o que é certo é que quando procurei olhar para trás para ver o tropeço, o tal pequeno senão, não havia nada para ver.  Quando falo disto, não há nada para dizer em minha defesa e já estou cercado por  tantas dúvidas que mais vale acreditar  quando me dizem que ainda sou professor.

Apareceu alguém a dar-me a mão a puxar-me de um passeio para o outro lado da rua por onde nem pensava ir, e eu dei por mim a agradecer a passadeira estendida só para mim e mudei de passeio, de professor ao espelho, para professor do outro lado do espelho.

Como é que é possível que eu não tenha percebido quando deixei de ser professor? Não dei aulas nos últimos 20 anos e sou professor? O que é que me aconteceu, durante os últimos 20 anos, para ocupar um cargo na administração pública da educação? Sem qualquer concurso e  seleccionado por ser obediente militante de um partido do poder, deixei-me estar até me deixar sobressaltar por uma piada sobre o inominável. Quem me suspendeu também se diz professor e anda pela administração pública ou sindicatos, por outros partidos. Também não deu por nada?
Quem é que me fez assim funcionário deste modo desmemoriado da vida até que tenha deixado de ver o ridículo da situação? A piada é que sou  professor sem exercício. Foi acontecendo. Às tantas, já respirei tanto gás ridicularizante que perdi o norte. Eu e os outros como eu.”




Professores de quê? Educadores? Que doença ataca os partidos que transformam  pessoas até elas se convencerem a ser o que não são e, para serem alguma coisa,  dizem-se professores de uma vida inteira  sem escolas, sem aulas e sem alunos. 

Sem espanto algum, damos pelo disparate. Nos últimos trinta anos alguns deuses menores e portugueses andaram a criar  um mundo paralelo e só deles, como contra-exemplo, para desmentir tudo o que disseram, dizem e dirão. 

No nosso mundo, ouve-se uma campaínha de alarme. Na escola real, o professor dá corda aos sapatos, com o livro de ponto na mão, toma o seu lugar no corredor cheio de crianças e jovens. Nas próximas horas, a profissão toma conta de tudo o que dá sentido ao título de professor. Pode ser fácil. Pode ser muito difícil. Tem de ser. E tem muita força.

[o aveiro; 24/05/2007]

somos, fomos, somos, seremos