os lados opostos

A propósito de documentos e propostas a precisar de aprovação na Assembleia Municipal, confrontei-me com as duas dúvidas que, mesmo sem dar por elas, sempre viveram comigo.

Uma delas é também uma inquietação e tem a ver com a natureza do voto na democracia representativa. Embora todo o articulado das grandes leis aponte no sentido do voto individual (e intransmissível) e rogue a consciência como única substância da decisão em Assembleia, onde, como tal, vive o eleito, sabemos que, para além da consciência individual, pesa uma pertença a um grupo, a um quadro de ideias ou de doutrrina que incorporou o eleito e tende a impor-se como fundamento de voto. Se defendemos a consciência individual como garante da afirmação da liberdade individual não é menos certo que é garantida a cada eleito a liberdade de optar por votar de acordo com o seu grupo. Aceitamos uma falha no exercício radical da liberdade? Devemos reprovar os eleitos que não exprimem no voto o sentido das suas intervenções? Que sabemos nós dos outros? Capaz para defender quem seja amordaçado, torno-me incapaz de reprovar quem decide optar pelo interesse do seu grupo na hora do voto. Respeitar tal decisão não é também dar liberdade à liberdade individual? Inquieta-me saber que me torno compassivo com alguma coisa que não quero para mim próprio. Deixando que haja dúvida, desmonto armadilhas morais?

A outra inquietação tem a ver com os raciocínios plausíveis e as recomendações de sentido das palavras que podem significar coisas diferentes. Dou por mim, a opor-me ao excesso de rigor que pretende tirar dos argumentos as palavras de múltiplos sentidos, bem como ao excesso de precisão. Os articulados não existem independentes das pessoas que os lêem, a quem se aplicam e que os aplicam... O regulamento escrito regula e pode ajudar, mas não resolve o problema humano. Recomendamos leituras integrais e isso significa ter sempre todos os artigos presentes e não só aquele que radicalmente dirime o conflito de interesses, para além do contexto dos interesses em jogo. E mandamos tudo para o saco do bom-senso dos técnicos e responsáveis políticos. E se eles não tiverem esse bom-senso que nem sabemos bem o que é? O bom-senso é tanto deles como nosso - eis o que eles (e nós) precisam saber. Quando faltar a uns, que aos outros sobre o bom-senso de puxar o alarme e ir à luta.

[o aveiro, 11/10/2007]

a república

para mim
a república sempre foi
aquela gaja boa muito mais velha que eu
meio destapada pela bandeira

passados estes anos todos
embasbaca-me saber que ela está na mesma

enquanto eu ... enfim.

o outono

bem que o ouvia quando ele chegava
arrastando pés pesados e folhas caídas
como quem levanta as cores maduras pelos cabelos
enquanto saboreia a última luz da tarde

por isso é que eu sei o que é ouvir mal

escrito e feito.

Sentado nesta varanda de vendavais, imagina-se a ler um romance. Mais capaz de ler do que escrever, o escritor falhado tenta apanhar o fio da trama. Se um romance é sempre uma teia de relações, bem sabemos todos que há uma aranha que tece a teia e a cada vibração sonha uma vítima. Cada um de nós sonha uma teia para não estar só.

O herói quis contar a sua vida de uma forma muito peculiar. Como se tivesse querido apagar-se, o herói descreve uma paisagem, uma nebulosa de gestos de uma multidão que se move à sua volta. Talvez tenha desisitido de ter vida própria e diz-nos que a sua vida é a vida dos outros. Pede ao leitor os olhos para ver.

A azáfama dos passos em volta faz de personagem e a realidade até pode ser uma azáfama tonta. Será que o autor faz figura de corpo presente e escreve para abençoar uma azáfama de formigas perdidas num labirinto? De nada soube e só sabe por lhe terem contado ou porque apontou num caderno de merceeiro, uma a uma, as andanças que vendeu fiado para ser desapontado a dedo como instigador.. O autor terá inventado um alvo voador para ser em vez dele?

O romance faz perguntas. A verdade pode estar escrita a várias mãos independentes que buscaram contar, sob um nome único, várias contas de um rosário de penitentes. Ou numa única mão de bonecreiro manipulador que dá fala às várias vozes e se comove até às lágrimas do pormenor quando na fala faz as vezes das crianças, dos jovens, dos velhinhos. Sinais exteriores de extravagância estão espalhados por todo o romance até iluminarem o dono do dom da fala em cena.

Fazem perguntas ao romance. E o romance desata um nó de garganta, um soluço perturbado, uma dor de alma. Conta-nos como são feitos os dias: da manhã das migalhas a todos quantos vão comer na mão à tarde peregrina que tudo colhe e tudo doa... a quem doer. Assim se fez um dia para vestir uma voz de povo e outro para ser voz de um dono, um dia de cada vez ou todos num só dia - disse o cuidadoso romance ao ouvido da novela que por ali passava, toda aperaltada.

Novela? - chamou ele, com voz doce. Novelo? - perguntou ela.

[o aveiro; 4/09/2007]

pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui