curso de mudanças subterrâneas

Cada governo ou cada partido ou cada ministro sabe que não pode pedir para o seu tempo médio de vida (enquanto ministro da democracia portuguesa) a possibilidade de executar mudanças sustentáveis e verificar, por resultados escolares consequentes, o alcance das suas políticas. Cada ministro sabe que estará reformado ou morto antes de se conhecer o impacto de uma ou outra das suas decisões de política educativa.
A revisão participada do currículo, iniciada por um governo do partido socialista, foi um processo longo por ter chamado à participação efectiva todos os parceiros sociais, mais ou menos organizados e com interesses contraditórios (mutuamente exclusivos em muitos casos), e pela ambição de definir adaptações aos perfis de competências do ensino secundário a exigir adaptações nas ofertas de ensino e de organização das escolas, muito além de simples adptações de programas de ensino. Os responsáveis governamentais por tais decisões políticas puderam assistir ao arranque do seu programa de mudanças. A proposta original não passou completa para a acção e, mesmo já transformada em acção, veio a ser alterada por medidas avulsas dos ministros que se seguiram, sem que os documentos técnicos tivessem recebido adaptação.
Uma revisão participada, lenta, constitui uma fonte de legitimação das mudanças pela sociedade, procura um sentido social para a mudança que seja consentida pelos agentes educativos que acompanham a sua génese e evolução. Uma boa parte da formação para uma mudança por parte dos professores e outros agentes fica consolidada, ao menos como necessidade sentida, na fase preparatória.
Reforma alguma se compadece de poderes que almejam principiá-las e vir a colher frutos. Em democracia, os poderosos têm contrato a termo certo. Mas incapazes de cumprir os seus nobres papéis de executantes honestos das grandes políticas de regime, os políticos de ocasião anseiam por arranhar uma eternidade de circunstância.
A actual nova ministra actua nessa revisão curricular participada, ainda não completamente transformada em acção. Grande parte dos documentos reguladores da organização de oferta educativa e dos programas de ensino mantêm-se aparentemente em vigor. Mas, ao arrepio da lei escrita, este ministério tem conseguido realizar uma clandestina revolução curricular e organizacional. Estão a ser postas em prática por via autoritária muitas medidas que não passaram nas negociações da revisão participada e sem constarem em papel timbrado. Recados e telefonemas das direcções e secretarias fizeram nascer de quase nada cursos profissionais e transformaram os, até há pouco, cursos tecnológicos de futuro em coisa nenhuma do presente. Sem qualquer ligação às empresas das suas regiões e sem quaisquer acordos protocolares, previstos em lei, as escolas públicas ganharam cursos profissionais e os estudantes que tinham pedido a sua matrícula em cursos tecnológicos acabaram matriculados em cursos profissionais com currículos diferentes, em alguns casos, mesmo com novas disciplinas em que não se inscreveram. E tudo feito sem que aos professores fossem dadas quaisquer oportunidades de formação para os programas que conheceram em Agosto e leccionaram a partir de Setembro.
Estes falsos cursos profissionais têm falsos aspirantes a profisisonais. Professores impreparados para programas práticos e para avaliações subordinadas ao desempenho profissional que nem sequer está no centro das preocupações já que não há empresas de serviços, comerciais ou industriais envolvidas como ambiente, presente ou futuro, de algum desempenho.
Mesmo que a razão prática nos diga haver justiça na aproximação ao trabalho, nada sobrevive em adversativa ideológica, em recusa ao trabalho de hoje, ao estudo. E nada sobrevive no ambiente de desregulação completa da profissão de professor. Profissão, sim! Mas que profissão? Com quantas ferramentas trabalha um professor? Com quais e com quantas pessoas trabalha um professor?


[a página de educação; Novembro de 2007]

olhar através

em busca do tempo passado


Um homem dava o braço a uma mulher e insistia em mostrar-lhe onde tinha feito a tropa. Mas não lembrava bem o caminho nem o nome do seu regimento. Ouvia dizer que tudo tinha acabado ou estava prestes a acabar. De qualquer modo, o que ele via hoje não era o que tinha visto há 40, 50 ou mais anos atrás e estava perdido, tanto para si como para a mulher que, sem querer, começava a duvidar de todas as histórias de tropa fandanga e juventudo que ele lhe contara.
Confirmei todas as mudanças e guiei a sua memória até ao parque e ao quartel, confirmando que os dois quartéis jão não albergavam tropas e que, se ele queria ver onde tinha sido jovem militar, tinha feito bem em voltar agora. Ainda vinha a tempo de ver a guarita de onde espreitara ... o quê?
O que se via então daquela guarita? O que teria ele visto?

há quem pense

há quem pense estar acima da lei

e há quem pense que acima
da lei estão aqueles que adiam o dia
de serem apanhados nas malhas
da lei que redigiram para intimamente
a conhecer e melhor a trair

e a justiça seja cega para não descobrir

os lados opostos

A propósito de documentos e propostas a precisar de aprovação na Assembleia Municipal, confrontei-me com as duas dúvidas que, mesmo sem dar por elas, sempre viveram comigo.

Uma delas é também uma inquietação e tem a ver com a natureza do voto na democracia representativa. Embora todo o articulado das grandes leis aponte no sentido do voto individual (e intransmissível) e rogue a consciência como única substância da decisão em Assembleia, onde, como tal, vive o eleito, sabemos que, para além da consciência individual, pesa uma pertença a um grupo, a um quadro de ideias ou de doutrrina que incorporou o eleito e tende a impor-se como fundamento de voto. Se defendemos a consciência individual como garante da afirmação da liberdade individual não é menos certo que é garantida a cada eleito a liberdade de optar por votar de acordo com o seu grupo. Aceitamos uma falha no exercício radical da liberdade? Devemos reprovar os eleitos que não exprimem no voto o sentido das suas intervenções? Que sabemos nós dos outros? Capaz para defender quem seja amordaçado, torno-me incapaz de reprovar quem decide optar pelo interesse do seu grupo na hora do voto. Respeitar tal decisão não é também dar liberdade à liberdade individual? Inquieta-me saber que me torno compassivo com alguma coisa que não quero para mim próprio. Deixando que haja dúvida, desmonto armadilhas morais?

A outra inquietação tem a ver com os raciocínios plausíveis e as recomendações de sentido das palavras que podem significar coisas diferentes. Dou por mim, a opor-me ao excesso de rigor que pretende tirar dos argumentos as palavras de múltiplos sentidos, bem como ao excesso de precisão. Os articulados não existem independentes das pessoas que os lêem, a quem se aplicam e que os aplicam... O regulamento escrito regula e pode ajudar, mas não resolve o problema humano. Recomendamos leituras integrais e isso significa ter sempre todos os artigos presentes e não só aquele que radicalmente dirime o conflito de interesses, para além do contexto dos interesses em jogo. E mandamos tudo para o saco do bom-senso dos técnicos e responsáveis políticos. E se eles não tiverem esse bom-senso que nem sabemos bem o que é? O bom-senso é tanto deles como nosso - eis o que eles (e nós) precisam saber. Quando faltar a uns, que aos outros sobre o bom-senso de puxar o alarme e ir à luta.

[o aveiro, 11/10/2007]

a república

para mim
a república sempre foi
aquela gaja boa muito mais velha que eu
meio destapada pela bandeira

passados estes anos todos
embasbaca-me saber que ela está na mesma

enquanto eu ... enfim.

o outono

bem que o ouvia quando ele chegava
arrastando pés pesados e folhas caídas
como quem levanta as cores maduras pelos cabelos
enquanto saboreia a última luz da tarde

por isso é que eu sei o que é ouvir mal

escrito e feito.

Sentado nesta varanda de vendavais, imagina-se a ler um romance. Mais capaz de ler do que escrever, o escritor falhado tenta apanhar o fio da trama. Se um romance é sempre uma teia de relações, bem sabemos todos que há uma aranha que tece a teia e a cada vibração sonha uma vítima. Cada um de nós sonha uma teia para não estar só.

O herói quis contar a sua vida de uma forma muito peculiar. Como se tivesse querido apagar-se, o herói descreve uma paisagem, uma nebulosa de gestos de uma multidão que se move à sua volta. Talvez tenha desisitido de ter vida própria e diz-nos que a sua vida é a vida dos outros. Pede ao leitor os olhos para ver.

A azáfama dos passos em volta faz de personagem e a realidade até pode ser uma azáfama tonta. Será que o autor faz figura de corpo presente e escreve para abençoar uma azáfama de formigas perdidas num labirinto? De nada soube e só sabe por lhe terem contado ou porque apontou num caderno de merceeiro, uma a uma, as andanças que vendeu fiado para ser desapontado a dedo como instigador.. O autor terá inventado um alvo voador para ser em vez dele?

O romance faz perguntas. A verdade pode estar escrita a várias mãos independentes que buscaram contar, sob um nome único, várias contas de um rosário de penitentes. Ou numa única mão de bonecreiro manipulador que dá fala às várias vozes e se comove até às lágrimas do pormenor quando na fala faz as vezes das crianças, dos jovens, dos velhinhos. Sinais exteriores de extravagância estão espalhados por todo o romance até iluminarem o dono do dom da fala em cena.

Fazem perguntas ao romance. E o romance desata um nó de garganta, um soluço perturbado, uma dor de alma. Conta-nos como são feitos os dias: da manhã das migalhas a todos quantos vão comer na mão à tarde peregrina que tudo colhe e tudo doa... a quem doer. Assim se fez um dia para vestir uma voz de povo e outro para ser voz de um dono, um dia de cada vez ou todos num só dia - disse o cuidadoso romance ao ouvido da novela que por ali passava, toda aperaltada.

Novela? - chamou ele, com voz doce. Novelo? - perguntou ela.

[o aveiro; 4/09/2007]

pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui