viagens como presentes

Estou cansado demais para algumas viagens que a vida me reserva. Mas tenho de reconhecer que o mundo está mais pequeno e que me sinto muito confortável quando tenho de me deslocar ao Porto e a Lisboa. A experiência tem demonstrado que posso confiar nos horários dos comboios nessas deslocações e a minha velhice dá graças por isso. Na última semana tive de ir a Lisboa a uma conferência sobre o ensino da matemática em Portugal e devo agradecer a quem teve a paciência de me levar até lá e de me devolver a casa no fim da coisa.

Nem tudo foi assim tão fácil e lá tive de me levantar na madrugada de sábado para ir até ao Alentejo para onde me guiei o melhor que soube. Levei-me como professor com cabeça para o Alentejo e voltei agarrado a um pão com cabeça. Trocas vantajosas, penso eu.

Nos outros dias da semana, viajei entre a escola e a livraria da Universidade onde, por uns dias, esteve em visita a Exposição ‘Experimentar a Matemática’. Três peregrinações a pé, pela manhã de Aveiro, pelos passeios bordados de árvores entre a Escola José Estêvão e a Universidade. Ida e volta, em boa companhia. Alguma marcha forçada temperada pelo convívio, alguma desconfiança natural até à alegria das experiências e das descobertas a exigir a imposição do regresso inadiável. Coisas simples que ajudam a Matemática e a Ciência. Uma experiência significativa, realizada com êxito, vale mais que mil orações de sapiência. Não me canso de lembrar que os novos meios criados no nosso tempo e expostos para serem experimentados são do domínio dos prodígios para as pessoas da minha idade e do domínio da necessidade que precisamos de entusiasmar nestes dias. Tenho tanta pena de não saber nem poder realizar todas as viagens que é preciso fazer com os jovens.

Reconhecemos (e agradecemos) aos professores e monitores, que ajudaram os jovens na sua viagem experimental, a virtude magnífica da alegria científica de quem gosta da viagem. E a quem não viveu em visita a experiência matemática recomendamos a visita virtual em http://www.experiencingmaths.org. e a http://www.atractor.pt ou às exposições da Associação Atractor, no Porto, ou no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa. A Matemática também mora em viagens que não cansam.


[o aveiro; 15/05/2008]

a ponte

do que não existe como detonador

Pelos nossos jornais, ficamos a saber que um furacão devastou a Birmânia e sabemos que ninguém sabe a dimensão da tragédia, quantos são os milhares de mortos ou os milhares de desaparecidos. Pensamos mesmo que não houve quem, a mando da ditadura militar, se tenha dado ao trabalho de contar. Qualquer número serve. Se formos a um mapa deste tempo, nem encontramos a Birmânia. As pessoas do meu tempo lembram-se da palavra e é por isso que os jornais portugueses falam da Birmânia e não de Myanmar. Algumas pessoas podem ter ouvido falar de uma frágil mulher birmanesa que lidera a resistência contra o regime militar. Se o país que já nem é o mesmo nome, não tem birmaneses que possam ser vítimas de um furacão. Como chamaremos hoje aos que nomeávamos como birmaneses? Não sei. Onde fica Rangum? O que pode ter sobrado como desolação? Quem, sendo de longe, viu de perto o que aconteceu, disse que nem bombeiros, nem exército, nem quaisquer autoridades apareceram para socorrer quem pediu socorro, como se houvesse a ausência de estado a somar à desolação. Que podemos esperar de uma ditadura militar omnipresente para a opressão?

Um outro furacão está a varrer o planeta, todo o planeta. A subida dos preços no sector da alimentação mundial é o furacão, a maior tempestade. A subida dos preços do petróleo tornou apetecíveis (lucrativos, diga-se) muitos produtos alimentares tornados matérias primas para a produção de combustíveis. E todos demoram eternidade a decidir se os estados devem intervir na regulação forçada do mercado ou se devem deixar o mercado dos especuladores funcionar, que é o mesmo que espalhar a fome a nível mundial, a devastar florestas, a acelerar mudanças na produção agro-alimentar que já não alimenta bocas humanas e se tornou em mais uma prova da voracidade da besta que não hesita em devorar a humanidade. A besta está a devorar florestas e a assistir às marchas de esfomeados e desempregados com a satisfação de quem vê entrar homens nas bolsas de disponíveis para o trabalho escravo, em troca da côdea, sem lhes ver o crispado coração, o punho cerrado.

Cada um dos constituintes da besta garante que não é parte da besta. Ninguém é o que parece. Estamos em Maio, mês do furacão. Aos poderosos, recomendamos uma visita de estudo ao museu de história natural das devastações. Saibam que tão temíveis são os que nem existem como os que resistem.

[o aveiro; 08/05/2008]

eu nunca fui a santiago

eu nunca fui eu mesmo.
eu nunca fui.

eu nunca caí em mim mesmo.
eu nunca caí.

eu nunca fui a minha casa.
eu nunca fui a casa.
eu nunca fui casa.
eu nunca fui.

eu nunca fui a santiago.
pelo meu pé
a minha mãe levou-me a fátima
com ela e com santo andré
contando quilómetros
pelas contas do rosário.

para voltarmos ao mesmo lugar
que já não era o mesmo lugar
eu tinha deitado fora uma a uma
as contas do meu rosário


e não era preciso porque o regresso
foi um sonho solto numa camioneta

estação do tgv - quem foi que disse?

como chuva na face

o homem planta uma árvore
bem presa por raízes à terra

e por cada árvore do homem deus

é uma árvore de água
ansiosa por ser nuvem
e deixar-se cair nos braços
da árvore do homem.

frágeis muito frágeis
são as raízes nos céus

verdura

de Arsélio Martins, mesmo quando não parece .