a revelação

A última semana revelou-se difícil de viver. Sabemos da morte inevitável para cada um de nós e sabemos da possibilidade da morte dos que nos são próximos em qualquer dia do ano. Mais sabemos da elevada probabilidade de que os nossos doentes morram a qualquer momento. Mas nunca encaramos a separação física definitiva, mesmo quando sabemos que ela já está realizada em sofrimento mais que na morte real. O sofrimento separa-nos uns dos outros mais que a vida. Costumo dizer que a vida manda que nos movimentemos para nos afastarmos uns dos outros. O movimento autónomo é sinal de vida e é sinal de separação. Andamos sempre a procurar elementos separadores enquanto crescemos. Só nos consideramos adultos quando nos separamos. Ansiamos pelas separações. Mas não aceitamos a morte como separação e resistimos-lhe. Agarramo-nos aos vivos enquanto estão vivos. Porque a morte serve para efectuar um corte doloroso, uma separação distinta. Doces separações aquelas que a vida opera no seu curso natural - temos consciência disso quando a morte vem separar com um abismo vazio.

Na última semana não deixei de pensar nas separações. As pátrias, as religiões, os ódios e desprezos, as explorações e violações separam em vida pessoas umas das outras e de tal forma que cada uma delas pode operar a morte de outra sem sofrer a dor de separação vazia que a morte é. E vimos as famílias a precisar dos cadáveres dos familiares como condição para a separação entre a vida e a morte provocada pela guerra, embora não estranhem a separação que dá origem à guerra e que está antes da morte dos soldados. Dizem-me que é preciso encontrarmo-nos com o corpo ou o que dele nos derem para fazer o luto, para aceitar a separação. Não compreendo.

Ainda menos compreendo a atitude dos nossos banqueiros e financeiros que conduzem a guerra financeira, abusando e usando o dinheiro de outros para operações que, por não serem controladas, podem gerar lucros fabulosos. Eles não querem saber de onde vem o valor acrescentado ao dinheiro em movimento. Mas sabem que esse valor significa lavagem de dinheiro sujo, venda de armas e material bélico a bandidos, governantes e senhores da guerra, exploração sem limites, ... Eles sabem, na sua santidade aparente, eles sabem que as suas operações matam, que são mandantes de crimes sem nome. Sabem que não podem contar as suas vítimas. Também sabem que não lhes pedirão os cadáveres das vítimas dos seus negócios. Esses banqueiros podem ter usado o meu dinheiro para essa guerra suja.

E eles estão no meio de nós.


[o aveiro; 24/07/2008]

a revelação

dois em um

Há muitos anos atrás, fiquei uns meses a trabalhar numa escola de Aveiro. Devia estar em mudança de São Tomé para Cabo Verde ou em Cabo Verde, de S. Vicente para a Praia. Não sei. Nem sei em que ano. E nem isso interessa. Posso saber do que aconteceu sem saber quando aconteceu. E cansa-me procurar.
Nesse pequeno intervalo (dois ou três meses) leccionei em algumas turmas que me estavam distribuídas. De uma delas, lembro-me de alguns alunos e há quem, passados muitos anos,tenha falado comigo lembrando pequenos episódios desses meses em passagem. Devem ter-se divertido e eu também.

Uma aluna de então, Gabriela(?), contou-me anos depois que me tinha achado muito estranho. Em alguma deslocação com o pai a uma fábrica da região de Aveiro, tinha-me conhecido como motorista (camionista) da empresa. Ela sabia que o seu professor de matemática era camionista de longo curso e até sabia onde eu pegava ao serviço como camionista. Não sei como é que ela resolveu o problema. Mas lembro-me de ter sido dois, realmente dois.

Dos dois, um morreu a meio da tarde da passada sexta feira. Nas horas de espera, conversei com pessoas que não via desde esse tempo antigo. Um deles, Miguel(?), chófer de praça em Vagos, que me levou (e à família) ao aeroporto de então, falou-me de tudo e de nada, de todos e de ninguém (porque eu não sei o que ele pensa que eu sei) e assistiu comigo à passagem do barulhento cortejo de camiões (famílias inteiras na cabina) com histórias de fascínio pelos camiões e do meu fascínio pelos grandes navios sem porto. Por momentos, dei por mim sem saber quem morrera: qual dos dois?

naqueles dias, hoje

hoje, estava lá para ver
as costas de um dedo
a desenhar assinaturas
na fronte distraída

tão tarde e tão cedo
para publicar ternuras
impossíveis em vida

para publicar a despedida
de quando o tempo se dobra
escondendo a parte

que nem parte
nem fica

somos, fomos, somos, seremos