A. de Agosto

Habituei-me às mudanças de tempo, às mudanças de estação, às mudanças. De tal modo assim me habituei que sou uma pessoa diferente em cada mês. Eu sou variável e dependente. Quando dou por mim a olhar para mim vindo de fora não vejo essas mudanças quando mudo de janeiro para fevereiro, por exemplo. Mas vejo-me mudado de forma dramática quando por acaso me vejo em Julho e depois em Agosto. Quase não me reconheço.
Aconteceu ter escrito umas frases em Julho que só voltei a ler em Agosto e fiquei verdadeiramente irritado quando as vi atribuídas a alguém que se faz passar por mim. Estive mesmo para reclamar. No futuro, em vez de A. Martins, vou assinar A. de Maio, A. de Julho ou A. de Agosto.

a visita humana

Marcam-me encontros e ameaçam despir-se, caso eu apareça, logo ao primeiro encontro. Também recebo pedidos lancinantes de ajuda por um ou outro estudante com mães tão doentes que eu nem quero saber, ou mesmo ofertas de noivas jovens vindas directamente do oriente para a minha felicidade europeia.
Escrevem-me em papel timbrado ou lá perto. Apresentam-se algumas vezes como encarregados de negócios ou diplomatas com nomes africanos ou russos (penso eu, que leio romances) a precisar de parceiros que aceitem colaborar com contas de aluguer para que nela depositem dinheiros do outro mundo em passagem por este mundo.
Ameaçam-me com processos de inquérito numa delegacia de polícia em português brasileiro, caso eu não responda a não sei o quê, e mais recentemente acusam-me de entrar em locais proibidos, também em brasileiro que é a língua dos meus crimes pelo mundo fora, e mandam-me abrir um “executável” qualquer em minha defesa. Caso contrário...
Claro que habitualmente recebo postais de alguém que me ama ou me quer bem e, caso eu queira saber quem tanto me ama, bastar-me-á abrir um “executável” qualquer como quem abre uma porta com uma gazua. O brasileiro é também a língua de quem me ama a uma distância confortável.
O meu computador não é muito sensível a “executáveis” e o tempo tem passado sem que eu seja executado por estas iniciativas mais ou menos anónimas. De todas as mensagens indesejadas que diariamente atravancam as minhas caixas de correio electrónico, estas são as mais indesejadas e chegam a ser realmente assustadoras. Estas ameaças electrónicas sistemáticas que são lixo ao lado do lixo dos vendedores de viagra ou de campanhas de viagens aéreas com hotel dentro, de diplomas de universidades fantásticas, ... carregaram-me de boa vontade para com a tralha das vendas que atafulha a minha caixa de correio da porta da minha casa. Passei a gostar da tralha física que me visita e chego a ler amigavelmente alguns daqueles papéis antes de lhes encomendar a alma frente ao papelão.

Eu, que tudo faço pela internet, evitando balcões de repartições, de bancos, ... dei por mim a pensar que há bondade humana nas anunciadas visitas físicas dos inspectores do fisco que vão entrar nas casas para encontrar jóias ou outras coisas... que possam ser penhoradas. Pelo meu lado, nenhum sinal exterior de riqueza será disfarçado.

[o aveiro; 7/8/2008]

6 mm

A porta da cozinha dá para um quintal que mais parece um jardim. Em frente da porta, estende-se um carreiro direito, ladeado por uma latada de uvas americanas, assente em loureiros e vigas de granito grosseiro e por plantas estranhas aos olhos de quem conhece as plantas das aldeias do norte. Da porta, o baixote olha como a medir o comprimento do carreiro. Na mão direita, o velhote segura uma malga de azeitonas. Com a mão esquerda, da malga para a boca, levanta uma azeitona num esforço calculado, como um exercício preciso. Vê-se que o gordinho come a azeitona, até sentir que o caroço sobra limpo. Está tenso, como devem estar todos os atletas concentrados nos últimos ensaios. O caroço já está pronto a ser disparado pelo cano formado pelos lábios cerrados. Calçados numas sandálias largas demais, os pés preparam-se para o lançamento iminente. O pé esquerdo finca-se no chão em frente à porta, enquanto o pé direito toma balanço com ajuda da perna que se dobra pelo joelho. De repente, o caroço salta da boca e, imediatamente, o pé aparece projectado para a frente a tempo de pontapear com toda a energia o caroço cuspido. Certeiro, o pontapé apanha em cheio o caroço na sua trajectória descendente atirando-o para a frente na direcção do carreiro. Os olhos do atleta velhote seguem o caroço enquanto podem. Quando perde o caroço de vista, o atleta sabe que bateu o recorde nacional de lançamento de caroço cuspido e solta o seu grito de vitória. Considerado o melhor do mundo, está pronto a seguir para os jogos.

O seu grito abafou tudo por momentos. Quando se prepara para o segundo ensaio, ouve um grito de dor para lá do fim do carreiro. Uma mulher aparece furiosa. O furo de 6 milímetros de diâmetro numa das pernas da mulher está limpo e quase não sangra.

Debalde, a mulher procurara a bala.

O homem vira costas ao carreiro e poisa a malga das azeitonas ali mesmo em cima do frigorífico. Nunca tinha ido tão longe.

esmorizonte


A Marília mandou-me uma fotografia da linha que separa o céu do mar (de Esmoriz, penso eu). Mandou-me a sua linha do horizonte, humanamente interrompida por apetrechos humanos.

a ópera do fantasma

Aqui há muitos anos atrás, escrevi contra exames como se disso dependesse a salvação da humanidade. Atribuía aos exames a maldade absoluta, um último e derradeiro trunfo da reprodução das desigualdades sociais. E tinha razão. Nas minhas tiradas de ira, não precisava de pensar no que era o exame, só pensava no que pensava serem os seus efeitos em termos de selecção social operada pela escola. Contava meticulosamente os jovens oriundos das classes trabalhadoras que chegavam ao ensino superior e os números provavam o meu ponto de vista. Com razão contra o exame, ainda que os meus amigos de infância nem chegassem ao exame.

Mais tarde, professor e em democracia, achava que os exames atenuavam a perturbação social da falta de vagas nas escolas e nas universidades e criavam bolsas de trabalhadores infantis, juvenis e baratos. Reclamava contra os exames e reclamava mais escolas e mais jovens a estudar e menos jovens no mundo do trabalho. E tinha razão. Não me preocupava qualquer noção de exame. Os números do trabalho infantil entre os desfavorecidos existiam para me dar razão. Impossibilitado de me referir a todos os aspectos do sistema social responsável pelo mal, concentrava toda a ira nos exames clamando contra os problemas sociais da juventude. Os exames eram o pretexto. Claro que tinha razões para ser contra.

Tudo foi mudando. Aprovados novos programas de ensino, com base em amplas discussões sociais, muitos problemas persistiam. Havia cada vez mais jovens na escola até me parecerem que já podiam andar por lá todos os que quisessem. Sem haver professores para tanta gente. Estudantes em condições muito diferentes eram submetidos a um mesmo exame nacional? Era contra os exames e, na falta de melhor, aceitava que se compensassem as faltas imputáveis ao sistema nas notas dos exames. Como aceitar perguntas sobre assuntos que podiam nunca ter sido leccionados numa dada escola? Contra os exames nacionais, sempre! E tinha razão. O exame era o momento chave para denunciar a falta de professores, as desigualdades mantidas e criadas.

Na falta de melhor, aceito o corte e costura dos programas para tentar que o essencial chegasse a cada uma das partes do todo nacional. Com professores espalhados por todo o território e programas mínimos exequíveis, podia aceitar-se um exame de perguntas que se pudessem fazer a toda a gente. Isso fazia mau o exame por ser mau e curto o programa. Pior ainda: professores não ensinavam o que estava prescrito, só treinavam para o exame, enquanto outros desistiam da liberdade de trabalhar os temas do programa mais formativos por não os verem reflectidos nos exames. Contra o exame. Com razão.

De certo modo, tinha começado a ser verdade que o exame respeitava o programa de ensino: questionava aprendizagens de todos os temas, sem esquecer verificação de competências necessárias para acções futuras. Ninguém reclamava qualquer compensação, mas ainda persistiam desajustamentos culturais e de linguagem, contextos e práticas dos professores. E tinha razão em ser contra os exames para exigir que o sistema tornasse acessível ao todo nacional textos com modelos de perguntas possíveis e modelos de respostas esperadas para diminuir os desajustamentos. Muitos professores, se feitos para ensinar, não ensinam mais que um discurso seu como resposta em vez de dar livre curso ao pensamento e à iniciativa.

E continuava a ser contra os exames, para pedir mais tempo para pensar sem pressão, para ler melhor, para responder melhor, cada um a seu tempo. Não pedia mais tempo para mais perguntas e mais difíceis ou inesperadas. Nada disso. Contra os exames, pois claro.

Ao longo da minha vida, o exame não foi mais que o nome do momento propício para reclamar e exigir. E nunca houve o exame porque ele sempre foi variável dependente, espelho de mudanças exigidas e consentidas.

Sem saber nada de particular sobre o exame, reconheço este fantasma sem forma na obra colectiva. Cada vez mais complexa e exigente, a obra. Olho para o pormenor do exame: intrigante nada feito tudo, um tudo nada.


[a página da educação; Agosto de 2008]