pássaros verdes?

Por muito que nos custe admitir, somos pássaros verdes.

Eles dizem-nos que houve desregulação, ganância desmedida, especulação criminosa, irresponsabilidade, etc e ao mesmo tempo dizem-nos que é preciso apoiar o sistema financeiro, criar fundos de garantia do estado para as poupanças dos aforradores e os depósitos dos clientes dos bancos. Como se nós pudéssemos admitir que, sem haver ladrão, as poupanças das pessoas mudem de mãos ou ganhem asas e voem. Como se nós não soubéssemos como foi difícil aplicar taxas ao grande capital financeiro e nos tivéssemos esquecido dos lucros astronómicos de bancos e sociedades financeiras ou do pede e despede gestores bancários que se tornam filantropos ao lavarem o dinheiro sujo ou saem de cena mudando de cenário. Como se nós não tivéssemos sido atropelados por banqueiros bons pais de família a ajudar à missa e a obras de divina inspiração.
Para além de admitirmos a evaporação das poupanças e das pensões como factos normais nestes tempos de crise e de centenas de milhares de desempregados, recebemos ordem para pagar o imposto que garanta aos banqueiros e financeiros o regresso ao casino de sempre com o dinheiro de sempre que é o dinheiro dos outros, esses que deram algum equivalente produtivo pelo dinheiro que guardam nos bancos da roleta russa.
Na sociedade do espectáculo, habituámo-nos ao ar respeitável de administradores de fantasias acima de toda a suspeita, administradoras de viagens pelo universo todo em representação de bairros sociais em jogos de sociedade, de culpados sem culpa formada, de colarinhos criminosos mais apontados a medo que a dedo. E não estranhamos que haja regulação sem reguladores, desregulação sem desreguladores, especulação sem especuladores, ganância sem gananciosos, irresponsabilidade sem irresponsáveis. E não nos podemos espantar que os reguladores continuem sem regular, os especuladores criminosos continuem a especular, os governadores continuem a governar-se e os administradores continuem a ministrar pouca honra e pouca vergonha.

Se não somos pássaros verdes, somos o quê? Vítimas da Dona B(r)anca. Palermas?


[o aveiro;30/10/2008]

o medo que se recomenda

Distraído, o homem segue a rua que o guia para o trabalho. Por momentos, vai esquecido dos problemas da manhã e vai entrando pela calma da tarde. Depois de atravessar a passadeira, ouve um carro que pára a falar consigo. Distraído, aproxima-se. O carro fala pelos cotovelos como se o conhecesse há muito tempo, contando uma história qualquer. O homem distraído vai ouvindo o conto do vigário como se não fizesse parte do que está a acontecer. De certo modo, o homem deixa que o conto se conte para que tudo seja rápido ou passe a passado rapidamente. Mas o carro segue-o e já está atravessado no cruzamento de duas ruas criando uma fila de carros que apitam. Para o carro que fala com o homem não há pressas nem cuidado com os carros que apitam. Só então o homem acorda da sua distracção e pede ao carro que fala que deixe o cruzamento. Para isso, presta-se a ouvir a história do carro com alguma atenção. A preocupação do homem que anda a pé com os carros que apitam é a sua desgraça. O carro que fala começa a fazer convites cerimoniosos para isto e para aquilo e oferece coisas que de facto quer vender e, sempre incomodando o homem e os carros que querem passar, conta o conto do vigário. O homem distraído acaba por ceder e dar algum dinheiro para se libertar do assédio desconfortável do carro. O carro pede mais dinheiro e quando o homem já desperto acelera uma marcha de despedida, o carro que fala começa a gritar: “senhor doutor não me faça isso!” criando em quem passa a ideia que o homem roubado é mal educado por desprezar o carro que fala e o rouba.
O homem que caminha conta a história como se tivesse sido pressionado e roubado por um carro: Porque não quer acreditar que tenha sido pessoa a torturar a sua entrada na tarde, até fazer da sua distracção calma uma irritação assassina a que o caminhante não quer dar guarida no seu coração.
Depois do trabalho, o homem vai para casa. Da caixa do correio, retira as cartas e o papelixo do costume. Ao abrir as cartas, percebe que uma delas é a oferta de um cartão bancário que nunca pediu e não quer. Já recusou aquele cartão várias vezes. De cada vez, tentaram convencê-lo que tinha de fazer isto e mais aquilo para desfazer o que não tinha feito. A irritação assassina volta. Contra quem o rouba insistindo em ofertas que ele não quer.
Começa a ter medo de si mesmo. Desesperado, aos torturadores mascarados de amigos, o homem calmo recomenda medo equivalente.


[o aveiro; 23/10/2008]

as caras mais a cara do burro feliz