o tempo

a temperatura da primavera subiu ligeira as suas escadas, a meio parou e sentou-se ajeitando a saia e soltando os cabelos com gestos precisos. um trânsito de pétalas carnudas, brancas e rosadas, pedia uma lentidão consentida a quem passava: quem por ali passava, tardava em passar.

e eu, sem pensar, estacionei o camião na rua de cima. depois desci as escadas e deixei que o meu corpo adormecesse. as flores tomaram o meu lugar enquanto eu perdia a forma de existir para os outros,

não ganhei para o susto. ganhei consciência do peso dos que passavam sem dar por mim.

a conta calada

José Sócrates vestiu o (ul)traje da solidão obcessiva. Como se um partido pudesse deixar-se substituir por uma pessoa. Identifica-se e determina-se por oposição, rejeita-se por oposição. Cego e surdo vive num deserto. Há uma multidão de mãos de apoiantes sem cabeça e ideias a erguerem-se para ele como esperança no poder, parece que o levantam aos céus de um filme épico, não sendo eles mais que migalhas ou grãos de uma areia movediça que tudo consome. Há uma multidão que o rejeita como solução e ele não vê mais que uma campanha de rostos encapuçados por negros presságios de desgraça. Todos os dias recebe os mesmos avisos por altifalantes estrangeiros como ecos dos avisos que cá dentro compoem uma paisagem assim não, e ele afasta com gestos impacientes esses sinais voadores e a mosca que não se deixa apanhar e zumbe em vários comprimentos de onda. Já não discrimina o que cada um dos outros diz e tudo reduz a uma mancha sonora de desaprovação insensata. Prega no deserto a maioria absoluta como a criança espeta pregos na areia da praia, só que a criança sabe que prego que se espeta é prego que se desprega para recomeçar sempre do mesmo modo, até que o regresso a casa limpe o rasto do jogo. Mesmo que venha a obter uma maioria absoluta de mãos que pregam como ecos dele, ela só servirá para o reduzir a si mesmo ou a nada. O poder ensurdece e cega. A partir de certa altura, passeará de uma sala para outra por sombrios corredores do poder, movido a ar comprimido numa atmosfera de ar condicionado. O pior que lhe pode acontecer é ser cercado por criaturas de ar resignado que colhem os votos populares como se fossem um só: ele. Ele verbaliza uma razão trágica quando declara que governa, não quem representa, antes, quem é escolhido ou ungido, e, por isso, pede uma maioria absoluta para ser ele o primeiro ministro. E nós já sentimos como isso é verdade.

Por amor das pessoas, de Sócrates, da cidade e dos cidadãos, elevamos a voz contra a resignação e em apelo ao julgamento crítico. Em modo de oração democrática, humildemente, declaramos a nossa esperança nos que tudo ouvem, discutem e levam em conta para criar opinião própria e, em consequência, agir livremente em votações, livres e não condicionadas por fantasmas que confundem a saída da crise com a porta da casa do poder atravessar paredes...

[o aveiro; 6/03/2009]

março

os cães rosnam aos cheiros aéreos e as cadelas vagueiam
pelo relvado provocando fúrias
grandiosas ou grandiloquentes como quiserem
os professores que ensinem a melhor forma
para dizer estas coisas a animais

pachorrentos que olham sem ver
o apetite do açougueiro
que os pesa com o olhar

e lamenta a morte dos cães nos canis municipais
em terras onde os talhantes honrados não vendem carne de cão
publicamente

de nada

O guerreiro empunhou a lança.
Estranhou a curva da lança que lhe fez lembrar um podão que usava para cortar ramos de videira e esgalhar as pontas dos vimes. Não se lembrava de ter visto outra lança assim curva como aquela. Quem teria sido o podão de ferreiro para fazer aquele trabalho?
Demorou tempo demais a pensar enquanto os cavalos se aproximavam do acampamento. Quando recuperou da distracção reparou na tensão dolorosa dos seus músculos retesados e deu ordem para libertar a lança presa ao seu espanto.
Viu como ela partiu e com maior espanto a viu voltar. Até que deixou de ver.

as caras mais a cara do burro feliz